Título: LIBERAL À BRASILEIRA
Autor: Ali Kamel
Fonte: O Globo, 23/08/2005, Opinião, p. 7

Em tese, uma reforma político-eleitoral pode ser feita em benefício dos eleitores ou dos eleitos. Na prática, como parlamentares legislam em causa própria, no mundo inteiro as reformas são do segundo tipo. A proposta do PFL, aprovada na semana passada pelo Senado, não foge à regra. Tudo nela visa a beneficiar os partidos de uma maneira canhestra, como se as agremiações e os políticos fossem inimputáveis. Que um partido que traz no nome o rótulo de liberal proponha tantas limitações à liberdade de expressão política é algo que só confirma a geléia ideológica em que vivemos.

A proposta parte do pressuposto de que, no aperto, todos são corruptos. Tiveram a idéia de propor a proibição dos showmícios, porque são muito caros. Propuseram que apenas os candidatos falem na TV, sem nenhuma sofisticação de imagem, sem cenas externas, também para reduzir os custos de produção. Proibiram ainda a divulgação de pesquisas eleitorais nos 15 dias que precedem a eleição. E, por fim, propuseram a proibição de distribuir camisetas, broches, bonés e outras quinquilharias.

É como uma casa em que um dos membros é alcoólatra: não se compra bebida alcoólica. É como se os políticos dissessem: se a campanha for cara, eu roubo. Se eu quisesse provocar, diria: se for barata, também.

A forma que encontraram para impedir a realização de showmícios foi proibir que artistas sejam contratados, de forma remunerada ou não, para animar comícios. Isso é expressão pura de autoritarismo, uma medida claramente inconstitucional. Se um artista quiser participar espontaneamente de uma campanha, cantando, que o faça. É direito dele. Se um partido quiser pagar a um artista para entreter os seus eleitores, que o faça. Se um partido adversário considerar o expediente baixo, que denuncie. Se achar que um showmício é caro, que não faça. Se achar que o partido adversário gasta rios de dinheiro para comprar shows, que denuncie. Por que a legislação deve tutelar partidos e políticos? Eles que tomem conta de si.

Na mesma linha está a proibição de distribuir quinquilharias. Se um candidato é idiota o suficiente para acreditar que comprará o voto de alguém com um chaveiro ou um boné, por que terá de ser a sociedade a impedi-lo de gastar dinheiro, inutilmente, com isso? Nós não temos nada com o assunto, chega a ser ridículo pensar em tal tipo de proibição.

As propostas para o horário eleitoral obrigatório vão num caminho também perigoso, o da censura. Já escrevi aqui um artigo mostrando que a propaganda política, tal como é feita no Brasil, é pura fraude. Aquele escritório em que políticos, professores e intelectuais fingiam trabalhar no programa eleitoral de Lula era apenas cenário, uma fantasia. Como também eram falsos os debates em que Lula era ¿sabatinado¿ por estudantes. Duda Mendonça disse na CPI que muitas vezes Lula gravava de bermudas e paletó, com fita crepe colada atrás para o caimento parecer melhor. Todo mundo achou natural, mas não é. Igualmente, Serra foi falsamente entrevistado pelo apresentador de TV Gugu Liberato. Os programas eleitorais do tucano fingiam ser telejornais, o que certamente confundia o eleitor. Tudo isso é condenável, mas a solução não é impor que apenas o candidato fale, sem imagens, sem cenas externas. A solução é que o TSE impeça a mentira. Tem poderes para isso.

Aquele escritório virtual do Lula era tão obviamente falso que o TSE poderia simplesmente proibi-lo. ¿Mostre o comitê de verdade, não um cenário¿, diria a sentença. Ou mesmo um dos adversários poderia ter denunciado a fraude, se não estivesse cometendo fraude idêntica. Entrevista falsa? Não pode. Telejornal enganoso? Ponha fora do ar. Mas se um candidato de fato se dispuser a reunir um grupo de estudantes para se submeter a perguntas, por que proibi-lo? Se um candidato quiser mostrar in loco suas obras, por que impedir? Se mostrar o que não existe, deve sofrer as sanções: o TSE punirá ou os adversários denunciarão ou a imprensa cumprirá o seu papel. Se o candidato quiser mostrar os defeitos das obras de seu adversário, que o faça. Se estiver mentindo, que seja punido ou denunciado, seja pela imprensa, seja pelos adversários. O que não faz sentido é proibir tudo, para que a fraude não seja possível. Mais uma vez, é como proibir a venda de carros para impedir o roubo de carros.

O mesmo projeto prevê a redução no tempo da campanha. Os partidos teriam até o dia 31 de julho para definir as candidaturas e até o dia 5 de agosto para registrá-las. Como a eleição é no primeiro domingo de outubro, até um mês e vinte e cinco dias antes das eleições o país não teria um quadro definido de candidatos, o que geraria uma instabilidade grande do quadro político, com prejuízos para os cidadãos. Pode ser bom para os partidos, que ganhariam mais tempo para conchavos. Mais uma vez, porém, será uma reforma para eleitos, não para eleitores.

E, por fim, a proibição de pesquisas eleitorais fere de morte o direito que todo eleitor tem de se informar livremente. Saber se seu candidato é viável ou não, e, com isso, fazer escolhas, é um direito inalienável do eleitor. Negar isso a ele é ferir a Constituição. É uma medida de cunho autoritário, que só beneficia os partidos.

O mais curioso é que a reforma toca apenas levemente no financiamento de campanha. A lei atual simplesmente não prevê punição para empresa que doe em caixa dois. Na proposta aprovada pelo Senado, nenhuma mudança. Por via das dúvidas, não se mata a galinha dos ovos de ouro.

Mais uma vez, eu repito que mais importante do que mudar as regras é mantê-las, para que o eleitor saiba usá-las, e fazer com que sejam cumpridas. Nós precisamos apenas de ajustes: fidelidade partidária, cláusula de barreira e punição para doadores irregulares. Querer proteger a democracia com proibições é um contra-senso. Na verdade, o que se quis proteger não foi nem o eleitor nem a democracia, mas os eleitos.

ALI KAMEL é jornalista.