Título: Militantes entram em cena, sem estereótipos
Autor: Mauro Ventura
Fonte: O Globo, 21/08/2005, Segundo Caderno, p. 1

Filmes de ficção e documentários de 14 cineastas apresentam diferentes abordagens da luta contra o regime militar

Nos últimos anos, o cinema abriu espaço para o movimento ¿ como é chamado o tráfico de drogas. Filmes como ¿Cidade de Deus¿, ¿Carandiru¿ e ¿O invasor¿ trouxeram a periferia para as telas. Agora, outro movimento ¿ a esquerda que lutou contra a ditadura ¿ dá as caras.

¿ Mas sem o estereótipo dos militantes como inocentes úteis ou aventureiros porra-loucas ¿ frisa Silvio Da-Rin.

Em ¿Hércules 2456¿, ele vai entrevistar os presos políticos ¿ entre eles José Dirceu ¿ trocados pelo embaixador americano. Dos 15, nove estão vivos.

¿ Eles vão falar sobre suas motivações, repensar a luta armada, lembrar o vôo ¿ diz ele, que ficou preso por oito meses durante a ditadura.

Patrícia Morán preferiu outro recorte. Em ¿Clandestinos¿, ela vai ouvir os que largaram a vida pública. A idéia surgiu quando, na faculdade de história, percebeu um descompasso entre os relatos heróicos que ouvia da guerrilha e o mal-estar que percebia nos ex-militantes.

¿ Vi que há uma tristeza muito grande, uma falta de rumo.

¿Clandestinos¿ vai discutir perda da identidade

O filme discute temas como liberdade, direito de ir e vir, e identidade.

¿ Há uma perda de identidade, porque a pessoa passa a ter diversos nomes, roupas, endereços, biografias.

Os ex-militantes também são protagonistas do documentário ¿Tempo de resistência¿, de André Ristum.

¿ Quisemos dar uma idéia geral do período ¿ diz Ristum, de 33 anos, filho de ex-exilados.

Ele adaptou o livro do vereador Leopoldo Paulino, de Ribeirão Preto (SP). Dos 28 entrevistados, só um era da direita.

¿ Os vencidos é que contam a história. Os vencedores têm vergonha ¿ diz Paulino.

Os vencidos também estão retratados, mas de forma ficcional, em ¿O balé da utopia¿ e ¿Vôo cego rumo sul¿. Baseado no livro de Álvaro Caldas, ¿O balé da utopia¿ marca a estréia de Marcelo Santiago na direção. Mel Lisboa vive uma aluna que, influenciada por um professor, acompanha-o na luta armada.

¿ Ela vem com idéias românticas e idealizadas da guerrilha, e passa a questionar o movimento quando começa a cuidar de um guerrilheiro ferido ¿ diz Santiago.

¿Vôo cego rumo sul¿, baseado no livro de Sinval Medina, também desvia o foco dos militantes profissionais. Mostra quatro jovens que, nos dias 1º e 2 de abril de 1964, vão para o Sul quando ouvem falar que Brizola vai organizar a resistência.

¿ Quando li, identifiquei-me com aqueles simpatizantes desgarrados querendo encontrar algo para ajudar na resistência ¿ diz o diretor, Hermano Penna. ¿ O filme tem um tom de crítica à divisão das esquerdas.

Na safra atual, há espaço também para personagens que não pegaram em armas, como os quatro jovens músicos de ¿Os desafinados¿, de Walter Lima Jr.

¿ O filme fala de um sonho de transformar o mundo que é tolhido por um golpe militar. Fala de um ânimo, de um entusiasmo que é sufocado ¿ antecipa.

¿Angel¿ mostra a luta da estilista Zuzu Angel para denunciar a morte do filho Stuart e encontrar seu corpo.

¿ O assunto do filme é o Brasil dos anos 60 e 70, é a vida de Zuzu ¿ diz Sérgio Rezende, que já tinha feito ¿Lamarca¿. ¿ Mas o tema ultrapassa esse período e tem apelo universal. Tem uma coisa de tragédia grega, de Antígona. E tem também a questão da tortura, que é contemporânea, como se pode ver com os americanos no Iraque.

Tortura estará presente em filmes como ¿Corte seco¿

A tortura vai estar presente ainda no documentário ¿Vlado¿, de João Batista de Andrade, que mostra a história do jornalista Vladimir Herzog contada por seus amigos, como o próprio diretor. Vlado, como era conhecido, foi torturado até a morte, mas a versão oficial falava em suicídio. Outra vítima de tortura foi Frei Tito, que acabou se enforcando na França e está em ¿Batismo de sangue¿, de Helvécio Ratton.

¿ A tortura significa se apossar do corpo. No caso dele se apossaram da alma também ¿ diz Ratton, de 54 anos, outro ex-militante. ¿ Frei Tito antecipou uma certa descrença que a nação vive com o fim do sonho e a morte das utopias. Mas não me interessa simplesmente narrar acontecimentos de 30 anos atrás, e sim falar de algo que permita compreender mais profundamente o sentido da vida e da condição humana. Não é um filme para se vestir a camisa de Guevara e assistir.

¿Corte seco¿, de Renato Tapajós, passa-se quase todo numa cela e numa sala de tortura.

¿ A primeira versão do roteiro acabou ficando muito pessoal ¿ diz ele, de 61 anos, que foi preso e torturado. ¿ Fui depurando para tentar deixar de falar somente de algo que aconteceu em agosto de 69 com um grupo de classe média brasileira para tratar de uma questão mais universal, que é a capacidade do ser humano de infligir dor e humilhação a outro.