Título: Tirando o capuz
Autor: Mauro Ventura
Fonte: O Globo, 21/08/2005, Segundo Caderno, p. 1

Os anos de chumbo da ditadura militar ressurgem em 14 filmes

Os guerrilheiros estão saindo da clandestinidade. Depois de chegarem ao poder, os ex-militantes de esquerda começam a ocupar uma nova trincheira: o cinema. Com exceção de uns poucos filmes, como ¿Pra frente Brasil¿, ¿O bom burguês¿, ¿Ação entre amigos¿, ¿Lamarca¿ e ¿O que é isso, companheiro?¿, os 21 anos de regime militar passaram quase em branco nas telas. Agora, 14 cineastas voltam suas lentes para o tema. Dois filmes já foram lançados: ¿Quase dois irmãos¿ e ¿Cabra-cega¿. Outros quatro estão prontos. Seis estão na fase de filmagem ou sendo montados. E dois esperam patrocínio.

¿ Este período é um manancial fantástico para o cinema ¿ diz Silvio Da-Rin, que está rodando o documentário ¿Hércules 2456¿, nome do avião que levou os 15 presos políticos trocados pelo embaixador americano em 1969.

E é mesmo, a julgar pela variedade de abordagens, que mostram dos porões da tortura à Guerrilha do Araguaia.

¿ O que dá vida a essa safra que começa a sair agora é que se está conseguindo falar sem caricatura ideológica ¿ diz Renato Tapajós, que vai filmar ¿Corte seco¿. ¿ Após o fim da ditadura, houve um grande trabalho de desinformação que transformou os militantes em estudantes festivos e abobalhados ou em terroristas internacionais que fizeram curso na China ou em Cuba. Esta visão simplista contaminou o que se produziu a respeito, e o clímax disso é ¿O que é isso, companheiro?¿ (filme de Bruno Barreto).

Os anos de chumbo chegam às telas em parte a reboque da eleição de Lula.

¿ A eleição de um governo popular encorajou muita gente a buscar esses temas ¿ diz Ronaldo Duque, diretor de ¿Araguaya ¿ A conspiração do silêncio¿. ¿ Este governo, que hoje atravessa um período triste e obscuro, abriu corações e mentes para esse assunto.

E os cofres também.

¿ A chegada do PT ao poder deu condições financeiras para isso ¿ diz Roberto Mader, diretor de ¿Operação Condor¿, que teve patrocínio da Petrobras e da Fundação Ford.

Mas há outras explicações.

¿ Hoje, não há mais o risco de ser considerado revanchismo falar no tema ¿ conta João Batista de Andrade, diretor de ¿Vlado, 30 anos depois¿.

O tempo também cicatrizou um pouco as feridas provocadas pela repressão.

¿ As pessoas estão mais à vontade para falar no assunto, de todos os lados. O período está longe o suficiente para se ter uma visão mais reflexiva, mas perto o bastante para ter como lição importantíssima de ser aprendida ¿ diz Mader. ¿ E a distância permitiu que os arquivos da época começassem a ser abertos.

O filme mostra a colaboração entre os regimes ditatoriais do Cone Sul, com enfoque nas pessoas envolvidas. Mader conseguiu cenas inéditas de repressão e entrevistou até o general Contreras, ex-chefe da polícia secreta de Pinochet.

¿ O distanciamento histórico permite que hoje se fale com muito mais liberdade e clareza ¿ concorda Helvécio Ratton, diretor de ¿Batismo de sangue¿.

Se a ditadura militar, que começou em 1964, tornou-se uma passagem desbotada na memória das novas gerações, como canta Chico, será que haverá público para os filmes?

¿ Já passamos em 14 cidades e na platéia tem desde jovens de 16 anos a senhores de 70 ¿ diz Duque. ¿ Em Florianópolis, havia mil pessoas no cinema e 500 do lado de fora.

¿ Como tem interesse! ¿ completa o vereador Leopoldo Paulino, autor do livro que inspira ¿Tempo de resistência¿, de André Ristum. ¿ Temos viajado com o filme e tem escola onde fico duas horas respondendo a perguntas.

Os diretores descartam o risco de saturação e lembram o exemplo dos EUA.

¿ Os americanos fizeram 600 filmes sobre a Guerra do Vietnã e transformaram sua História, a conquista do Oeste, num gênero cinematográfico, o western ¿ compara Sérgio Rezende, que vai filmar ¿Angel¿.

¿ Quanto mais revisitado for esse período obscuro da nossa História melhor ¿ diz Marcelo Santiago, de ¿O balé da utopia¿.

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