Título: De pai dos assentamentos a artífice da retirada
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Fonte: O Globo, 20/08/2005, O Mundo, p. 33

JERUSALÉM. Muitas características são atribuídas ao primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. Ex-militar linha-dura, defensor de idéias ultranacionalistas, responsável pelo massacre de Sabra e Chatila, herói da guerra em 1973, inimigo de Yasser Arafat e, nas últimas décadas, político sagaz. Entre altos e baixos de uma carreira militar e política de mais de 50 anos, o chamado bulldozer de Israel não costuma perder o bom humor. Pouco conhecido do público, seu estilo bonachão é até motivo de piada entre repórteres que circulam pela Knesset. Em suas raras aparições no restaurante do Parlamento, Sharon toma café preto e come frutas secas, atraindo hordas de jornalistas ao seu redor. Nos corredores, comenta-se que quanto maior seu bom humor e mais constantes suas risadas e piadas, mais complicada é situação política do país.

O bem-sucedido plano de retirada de 21 assentamentos judaicos na Faixa de Gaza provou esta semana que a força de Sharon segue intacta. Talvez seja mesmo seu olhar penetrante ou seu bom humor o que irrita seus adversários, dando-lhe, aos 78 anos, capacidade de atropelar a oposição e levar adiante qualquer manobra sem se importar com inimigos. De acordo com Daniel Ben Simon, analista político do jornal "Ha'aretz", o Sharon de hoje não é o general que invadiu o Líbano em 1982, causando polêmica internacional quando o Exército israelense foi acusado de incitar milícias cristãs a destruir os campos de refugiados de Sabra e Chatila, provocando um massacre de mais de mil palestinos enquanto suas tropas invadiam Beirute. O Sharon de hoje seria um enigma a ser estudado.

- Ninguém sabe onde começou a mudança ou o que levou o grande nacionalista, pai dos assentamentos na Faixa de Gaza, defensor eterno da força, a adotar o plano de retirada unilateral - diz Simon. - Toda a imprensa tenta descobrir o que se passa na sua cabeça, mas ninguém consegue. Isto é impressionante. Há muitas perguntas e poucas repostas. O fato é que Sharon sente que não precisa de manobras políticas ou alianças fabricadas. Sente que pode se livrar de qualquer obstáculo, pois o povo acredita nele. Sua imagem de homem forte conquista a confiança de muitos, e para ele isto é o bastante.

Seu nome sempre esteve ligado à segurança. Nascido em 1928, começou a carreira militar aos 18 anos no grupo clandestino judeu Haganá, que lutava pelo fim da ocupação britânica na Palestina. Durante a Guerra da Independência, em 1948, ocupou um importante cargo de comando e foi ferido numa batalha pela cidade de Latrun. Desde então, o então jovem Sharon passou pelos mais altos cargos das Forças Armadas de Israel e ganhou destaque como chefe do Comando Sul do Exército, responsável pela reconquista do Canal de Suez na Guerra do Yom Kippur, quando tropas sírias, egípcias e jordanianas atacaram o Estado judeu, em 1973.

A dureza como militar o pôs rapidamente na liderança do partido de direita Likud. Eleito deputado pela primeira vez em 1973, seus discursos marcados pelo nacionalismo e pelo repúdio a tentativas de negociação unilateral com os palestinos o impulsionaram à liderança do partido. Seu ar aparentemente tranqüilo, mas sempre desafiador, despertou a fúria da esquerda israelense, que o acusa de ser tão duro a ponto de tornar impossível qualquer diálogo. Sharon faz o que quer e quando quer. Em 2000, numa de suas atitudes mais ousadas, subiu ao Monte do Templo, local sagrado para muçulmanos e judeus, na Cidade Velha de Jerusalém, para provocar os árabes e provar a soberania israelense sobre a disputada cidade santa. O resultado foi o início da segunda intifada, a revolta palestina contra a ocupação israelense.

Após cinco anos de um círculo sem fim de atentados palestinos e violentos revides militares nos territórios, muitos acreditam que a inesperada decisão de desmantelar os assentamentos criados por ele próprio não são a prova definitiva de que o lobo Sharon tenha se tornado um cordeirinho. De acordo com o jornalista Atila Shumfalvi, comentarista político do jornal "Yediot Ahronoth", Sharon continua sendo o velho guerreiro de visões radicais. Shumfalvi acredita que a retirada de Gaza é apenas uma maneira de o premier escapar limpo de acusações de corrupção e melhorar sua imagem junto à comunidade internacional.

- Os anos de intifada destruíram qualquer tentativa de diálogo na região - afirma o jornalista. - O conflito árabe-israelense ficou estagnado e o público começou a se cansar, a querer soluções. O plano serviu também para abafar denúncias de corrupção envolvendo os filhos de Sharon e o escândalo de sonegação de impostos numa ilha grega. Fazer alguma coisa acontecer era a única maneira que ele tinha de permanecer em sua cadeira e melhorar sua imagem de homem mau. Não que Sharon vá dormir preocupado com o que pensam dele. Talvez pense que possa entrar na História como um herói em busca da paz, e não como o general durão que sempre foi e sempre será.