Título: Agora é Lula
Autor: AYDANO ANDRÉ MOTTA
Fonte: O Globo, 25/08/2005, Opinião, p. 7

Pode ser o troco por esta vida sempre morena, levada aos mergulhos no litoral farto, desfrutável; ou carma, pela ausência de hecatombes naturais e cismas religiosos a dividir esse povo risonho; ou ainda alguma praga muito bem-feita, por ganharmos tantas Copas do Mundo. O fato é que já estamos nós de novo mergulhados na mais cívica depressão, amaldiçoando o destino e as estrelas, enquanto amargamos a desilusão de assistir a um presidente e seu projeto político desmanchando-se em rede nacional. A crise implode nomes, legendas e biografias, enquanto faz renascer com força o conhecido sentimento de que o Brasil não tem jeito, que é atávico, estava escrito etc.

Agora, ouvimos o mantra ¿tem-prova-não-tem-prova¿, ¿ele-sabia-ele-não-sabia¿ no topo das paradas de sucesso. A nos espreitar, meses de fofocas, documentos reveladores, promessas de entrevistas apocalípticas, um olho no dólar outro na missa, a espera neurótica pelas revistas do fim de semana. O eterno duelo pelo poder terá ainda mais discursos apopléticos, o presidente suado pedindo pela própria alma, a oposição botando pilha. O blablablá cotidiano de Brasília será acompanhado como um quilométrico último capítulo de novela das oito. A ponto de nos fazer esquecer o vexame conceitual dessa baixaria toda.

Até no aborrecimento do ramerrame político, o Brasil já viu esse filme. Só não esperava que a refilmagem viesse tão cedo. Quaisquer que sejam o fim e as conseqüências da trama, uma triste garantia o país já tem: não era nada disso que se esperava quando, finalmente, após três recusas, o distinto eleitorado deu seu ¿então tá¿ a Lula. O país demorou, mas aceitou se entregar ao diferente, ao operário retirante nordestino, ao filho de mãe analfabeta e pai enterrado como indigente. Culpado ou inocente, traído pelos assessores ou arquiteto das delubices, de um rótulo o presidente não escapa: é ele o protagonista da decepção, do desencanto, da ressaca.

Escassos três anos atrás, era outro homem, outro governo, outra lógica de administração pública que prometia a propaganda eleitoral do PT ¿ aquela que, vitória assegurada, passou à História sob o título ¿A esperança venceu o medo¿ (lembra?). Rever hoje, iluminadas pela luz reluzente da careca do Valério, peças como o bailar das grávidas de branco colina abaixo, ou a desenvoltura do ¿Lulalá¿ repaginado em ¿Lulinha paz e amor¿ compõe um retrato trágico.

Nada é mais eloqüente do que ouvir agora o jingle, o lindo hino da campanha que embalou sonhos e comícios, o ¿Agora é Lula¿. Está lá: ¿Bote essa estrela no peito/ Não tenha medo ou pudor/ Agora eu quero você, te ver torcendo a favor/ A favor do que é direito/ Da decência que restou/ A favor de um povo pobre, mas nobre trabalhador/ É o desejo dessa gente, querer um Brasil mais decente/ Ter direito à esperança/ E uma vida diferente.¿ A música que fala em ¿decência¿, ¿pudor¿ e numa ¿vida diferente¿ é de Péri e Duda Mendonça ¿ ele mesmo, que nos contou na CPI que toda a propaganda foi paga com dinheiro valério. Inclusive o jingle! Por dentro ou por fora (outra mania desses tempos), é igualmente desalentador.

Não há sequer necessidade de lembrar promessas como os tais 10 milhões de empregos. Não sobrou nada daqueles salvadores da ética, super-heróis do partido da estrela, que se decompõe no ritmo das delubices. Cadê o guerrilheiro determinado, que escondeu rosto, nome e passado da própria família, tudo pelo seu projeto de país? Depois de falsear a voz na hora de se defender, vai a velório de madrugada, esgueirando-se de eventuais vaias e xingamentos. Virou um personagem como tantos outros, tristemente célebres, da política brasileira. Parecia diferente, revelou-se igual.

Que fim levou o soldado da guerrilha na floresta, amarrado a uma árvore após a batalha perdida para a repressão? Desapareceu soterrado por dólares que brotaram de cuecas, enxovalhado pelos companheiros, que o chamaram de fraco e incompetente. Biografia manchada para sempre, nem se dignou a responder. Agora, ensaia articular a volta. Depois de tanta luta pelo poder, de defender expulsão de rebeldes, juros altos, superávit fiscal estratosférico, ignora as lições que tem por aprender.

E, por fim, onde foi parar o presidente-operário? É para ele, mais do que todos os outros, que o jingle da campanha continua atual: Agora é Lula.

AYDANO ANDRÉ MOTTA é jornalista.