Título: NÓS DO MORRO QUASE É DEPORTADO
Autor: Fernando Duarte
Fonte: O Globo, 25/08/2005, O Mundo, p. 33

Grupo teatral foi alvo de aumento de vigilância britânica a imigrantes brasileiros ilegais

RIO e LONDRES. O aumento da imigração brasileira para o Reino Unido, um efeito direto das dificuldades de entrada nos Estados Unidos depois dos ataques do 11 de Setembro, preocupa há algum tempo as autoridades britânicas. Mas, de acordo com documentos do próprio Ministério do Interior britânico, o crescimento no número de cidadãos barrados nas fronteiras do país tem também como explicação uma política de vigilância voltada especificamente para jovens brasileiros considerados possíveis trabalhadores ilegais, que estaria em vigor desde 2003.

As informações foram publicadas no domingo pelo jornal ¿The Independent¿, embora estivessem disponíveis desde julho no website do ministério. Porém, as atenções da mídia e do público foram desviadas pelos atentados terroristas em Londres e a morte do brasileiro Jean Charles de Menezes. E foi também num domingo, mais especificamente o 14 de agosto, que a medida por pouco não acabou sendo sentida na pele pelo grupo de teatro Nós do Morro. Dez jovens de comunidades carentes cariocas e dois dirigentes do grupo ficaram duas horas e meia detidos no aeroporto de Heathrow.

¿Perguntaram-nos como poderíamos trabalhar com textos de Shakespeare¿

Os agentes da imigração demoraram para liberar o grupo, que viajou a Londres para participar de um workshop da Royal Shakespeare Company, preparatório para um megafestival internacional de peças do bardo inglês, que será realizado no ano que vem, em Stratford-upon-Avon. O Nós do Morro será o representante brasileiro, mas a autoridades no aeroporto de Heathrow demoraram para se convencer do fato, ainda que cada um dos integrantes da comitiva tivesse cartas de recomendação da RSC e do teatrólogo Paul Heritage, da prestigiada Queen Mary University, de Londres.

¿ Perguntaram-nos como nós, que nem sabemos falar inglês direito, poderíamos trabalhar com textos de Shakespeare, que nem mesmo os britânicos conseguem entender muito bem ¿ contou Guti Fraga, criador e diretor do Nós do Morro.

Embora não tenham gostado da ironia dos agentes da imigração, Fraga disse que o grupo não se sentiu humilhado com as mais de duas horas de interrogatório no aeroporto. A liberação só ocorreu depois de Heritage, especialista em teatro brasileiro, ter ido a Heathrow. Em entrevista ao GLOBO, o inglês mostrou-se indignado com a atitude das autoridades da imigração.

¿ A obra de Shakespeare não é exclusiva dos britânicos e é inacreditável que autoridades britânicas tomem atitudes como essa num momento em que as relações entre o Reino Unido e o Brasil estão tão delicadas por causa da morte de Jean Charles de Menezes. E pensar que gente vinda de comunidades carentes não tem condições de entender a mensagem de Shakespeare é, no mínimo, inaceitável ¿ afirmou Heritage.

O grupo voltou ao Brasil no domingo passado. Já o consulado-geral do Brasil em Londres informou ontem que espera informações de Fraga e Heritage para fazer uma queixa formal ao Ministério do Interior. As relações diplomáticas entre brasileiros e britânicos neste sentido, porém, andam estremecidas há algum tempo. Recentemente, o embaixador britânico em Brasília, Peter Collecott, ameaçou revogar o acordo de isenção de vistos para a entrada de brasileiros no Reino Unido.

E o documento publicado em julho dá instruções específicas para que agentes de imigração dêem atenção especial para jovens brasileiros oriundos de regiões mais pobres do país que cheguem ao Reino Unido alegando estarem viajando a turismo. Segundo dados do ministério, mais de quatro mil cidadãos do país tiveram a entrada recusada em 2003, num aumento de 142% em comparação com 2000. Desde a expansão da União Européia, em maio do ano passado, Brasil e Malásia passaram à condição de países mais vigiados pelas autoridades