Título: Nem morte, nem renúncia
Autor: Cristiane Jungblut/Luiza Damé
Fonte: O Globo, 26/08/2005, O País, p. 3

Lula diz que não fará como Getúlio ou Jânio e que vai 'ter paciência, paciência, paciência' como JK

No dia em que o advogado Rogério Buratti reafirmava no Congresso as denúncias contra seu ministro mais forte, Antonio Palocci (Fazenda), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem que não renunciará, como Jânio Quadros, nem se matará, como Getúlio Vargas. No enfrentamento dos momentos difíceis do seu governo, disse, adotará o exemplo do ex-presidente Juscelino Kubitschek: "Ter paciência, paciência, paciência, porque a verdade prevalecerá". Em seu desabafo, Lula disse que muitos presidentes já passaram por crises e que o Brasil sobreviveu a todas, citando Getúlio, Jânio e João Goulart, destituído em 1964 pelo regime militar.

O discurso - parte de improviso, inclusive as referências aos ex-presidentes - foi na 13ª reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Lula criticou o Ministério Público no caso das denúncias envolvendo os ministros Antonio Palocci e Márcio Thomaz Bastos (Justiça). Disse ter orgulho de ser petista, mas avisou que não há amizade quando se trata de desvio de conduta. Atacou a oposição, afirmando que ela quer pôr veneno na crise, e a antecipação da disputa eleitoral de 2006. Deixou claro que não está seguro sobre sua reeleição e anunciou que no momento certo decidirá se será candidato.

- Sou um homem de consciência muito tranqüila. Não farei como Getúlio Vargas, Jânio Quadros, João Goulart. O meu comportamento será o comportamento que teve o Juscelino Kubitschek: paciência, paciência e paciência, porque a verdade prevalecerá. E o povo vai saber, verdadeiramente, o que está acontecendo no Brasil, o que está por trás do que está acontecendo. Quem são os (inimigos) ocultos ou não, porque os públicos já sabemos. E vai saber quem praticou ou não corrupção neste país - disse.

Lula evita citar Fernando Collor

Lula falou sobre Getúlio um dia depois do aniversário de 51 anos de sua morte. O presidente fez questão de não citar Fernando Collor, que sofreu impeachment em 1992.

- Não vou dizer o (nome) do mais recente...

Lula ainda falou que João Goulart foi obrigado a renunciar, quando, de fato, ele foi derrubado pelo golpe militar e se asilou no Uruguai.

- Neste país, não há crise que não seja superada. Mas crise, neste país, já levou, em 1954, o presidente Getúlio a se matar; o Juscelino a ser mais achincalhado que qualquer outro presidente da História deste país (...) O Jânio Quadros, que não era um homem de esquerda, desistiu por causa do inimigo oculto. E até hoje não sabemos quem são os inimigos ocultos. Estão tão ocultos que a gente não conseguiu saber, e ele morreu sem contar para a gente. O Jânio, ou melhor, o João Goulart foi obrigado a renunciar - disse.

Lula tem feito repetidas menções a JK, para dizer que está sendo injustiçado. Ontem lembrou que JK só foi reconhecido depois de sua morte. Disse que nos jornais da época, JK era chamado de ladrão, mas hoje é exemplo:

- Todos se orgulham de pôr um cartaz do Juscelino em casa - disse ele, que também tem citado Getúlio.

Sem se referir ao ex-ministro José Dirceu e ao próprio Palocci, Lula disse que é preciso apurar as denúncias e o envolvimento de petistas.

- Pode ser o meu melhor amigo, dentro ou fora do PT, dentro ou fora do governo, se cometer algum equívoco de conduta, com a mesma grandeza que o convidei para o governo, o convido para deixar o governo...

Lula disse que se orgulha de ser petista e fundador do PT. O presidente repetiu que as instituições estão sólidas e que a democracia é a única certeza para superar a crise.

- Eu me orgulho de ter ajudado a criar o mais importante partido de esquerda da América Latina. Sou petista, tenho orgulho de ser petista, mas a justiça começa dentro de casa.

DESFECHOS

GETÚLIO VARGAS

Um dos mais marcantes presidentes da História brasileira, suicidou-se com um tiro no peito no meio de seu segundo mandato, em agosto de 1954. Um atentado ao então deputado Carlos Lacerda, seu feroz opositor, jogou o governo de Vargas numa grave crise política. "Saio da vida para entrar na História", escreveu, na carta-testamento.

JUSCELINO KUBITSCHEK

O médico mineiro ficou famoso pela construção de Brasília, mas ele levou adiante a industrialização brasileira, cujas bases foram construídas na Era Vargas. Eleito presidente em 1955, passou o mandato inteiro ameaçado por denúncias e tentativas de golpes, e precisou de toda a habilidade de conciliação típica dos políticos de Minas para completar sua gestão.

JÂNIO QUADROS

Eleito com votação recorde em 1960, renunciou em agosto de 1961, em meio a enorme crise política. Havia pressões dos Estados Unidos e do seu ex-partido, a UDN, pelo qual se elegeu presidente, para deixá-lo meses depois. Em carta enviada ao Congresso, Jânio atribuiu seu ato a "forças terríveis", mas jamais revelou o que seria. A renúncia abriu caminho para o golpe militar, três anos depois.

JOÃO GOULART

Eleito vice de Jânio (a legislação da época previa votos independentes para os cargos do Executivo), assumiu a Presidência em 7 de setembro de 1961. Seu mandato foi marcado pela tentativa de promover as reformas de base, que pretendiam mudar a sociedade brasileira. Foi deposto com o golpe militar de 1964.

Corpo a Corpo

MARCO ANTONIO VILLA

Em vez de Brasília, Valério

Para o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos, Lula foi infeliz não só ao se comparar com Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas, mas também ao fazer referência a Jânio Quadros. No primeiro caso, por não ter a grandiosidade dos dois e, no segundo, por falar em renúncia. "Joga água no moinho da oposição."

O que o senhor achou das comparações históricas feitas pelo presidente?

MARCO ANTONIO VILLA: A comparação com Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas é absolutamente infeliz. Lula não tem a grandiosidade dos dois. Quando se fala em Juscelino, lembramos de Brasília. Getúlio nos lembra o nacionalismo e o trabalhismo. Daqui a 20 anos, quando alguém falar de Lula, vai se lembrar de Marcos Valério.

E quanto a Jango?

VILLA: Aí a comparação foi perfeita. São dois incapazes que passaram pela Presidência. E a relação de Jango com o poder também era promíscua.

O tom usado por Lula foi adequado?

VILLA: Não, foi equivocado. Na situação em que ele está, não pode fazer qualquer referência à idéia de renúncia. Ele joga água no moinho da oposição.

Juscelino também foi acusado de corrupção?

VILLA: Houve acusações a ministros, em torno da construção de Brasília, e muitas lendas, como a de que JK teria a quarta fortuna do mundo. Mas ele morreu na pindaíba, vivia a política 24 horas por dia. Num período de muitas obras, é inevitável que ocorram desvios. Mas como comparar os governos? José Dirceu passou dois anos e meio conspirando, em dois anos e meio Juscelino fez Brasília.

A paciência era uma grande virtude de JK?

VILLA: Ele enfrentou a oposição violenta da UDN, com duas tentativas de golpe militar. Sobreviveu graças ao marechal Lott, seu ministro da Guerra. Juscelino tinha grande habilidade política, mas não a usava só para se manter no poder. Ele tinha um projeto, que executou. E era um homem muito corajoso, basta lembar que foi o único governador (de Minas Gerais) a comparecer ao velório de Getúlio Vargas, além de Amaral Peixoto, que era genro do presidente. Também foi em Minas que Getúlio fez sua última aparição pública, convidado por JK para a inauguração de uma fábrica. Qual o projeto de Lula? Continuar as políticas econômica e social de governos anteriores e manter-se no poder.

LUÍS CÉSAR EBRAICO

'Ele está inebriado'

O psicanalista Luís César Ebraico, autor do livro "A nova conversa Ö o poder da palavra em sua vida" (Ediouro), afirma que Lula está tão inebriado com a realização de seu sonho de chegar à Presidência que não gosta de ouvir sobre os problemas em seu governo nem quer falar claramente sobre eles. "Não querer ver é o primeiro passo para o caos".

Como o senhor avalia o discurso do presidente?

EBRAICO: Lula está inebriado de grandeza, quer ficar na lista dos grandes presidentes. Parece tão preocupado com isso que não quer ouvir o que de fato acontece em seu governo.

O senhor acredita que o presidente não ouviu mesmo a história do mensalão?

EBRAICO: Não dá para dizer se ele ouviu ou não ouviu falar sobre o mensalão, mas dá para dizer: Lula não quis saber, não agüenta ouvir. Ele está tão inebriado, tão encantado com seu brinquedo, a Presidência, que não quer ser aporrinhado com essa coisa de mensalão. Ele disse outro dia que com a economia não se pode brincar. E com a política, pode? A economia ele deixou com o Palocci e não brinca com ela? Lula tem se mostrado imaturo.

É por isso que ele se recusa a falar claramente sobre as denúncias, não dá entrevistas?

EBRAICO: Ele está vivendo o sonho do proletário que chegou ao poder, e não quer que esse sonho se estrague. Lula está ébrio, mas não é pelo álcool. Ele lutou e chegou ao poder, foi à ONU, disse que faria o Fome Zero mundial, não quer se aborrecer com minudências quando se sente no ápice da glória. Mas o presidente deveria ser o primeiro a fazer algo para que a verdade prevaleça. Ele tem resposabilidades. Não se pode tolerar a omissão.

Quais as conseqüências que esse tipo de comportamento pode acarretar?

EBRAICO: Não querer ver é o primeiro passo para o caos, ensina a psicanálise. O pior cego é o que não quer ver, diz a Bíblia. Mas esta crise pode ter ao menos um resultado positivo: acabar com a ilusão que está contaminando a política brasileira desde quando se desenhou a perspectiva de que Lula venceria as eleições. Vivemos desde então entre as ilusões do conservadorismo, de que o governo petista seria uma catástrofe do ponto de vista econômico, e, à esquerda, de que seria a salvação. Talvez ao fim de tudo isso a política possa voltar a ter pontos de contato com a realidade. (Ciça Guedes).

Legenda da foto: LULA: "SOU um homem de consciência muito tranqüila. Não farei como Getúlio Vargas, Jânio Quadros, João Goulart"