Título: PODER PARALELO
Autor: Carlos Minc
Fonte: O Globo, 26/08/2005, Opinião, p. 7

"Eu ontem joguei tanta coisa fora, a casa fica bem melhor assim" Herbert Viana

Não adianta chorar (minhas lágrimas já secaram) ou só se indignar. Há que entender como esta avalanche de erros e de ilegalidades soterrou os mais belos sonhos de várias gerações, e resistir com dignidade. Porque as desigualdades sociais, a exclusão, as poluições e os preconceitos aí estão e não dão trégua aos nossos fracassos.

O PT se formou como um rio caudaloso recebendo afluentes sindicais, estudantis, intelectuais, ex-guerrilheiros, católicos, trotskistas, ecologistas. Uma torre de Babel com múltiplos idiomas, utopias, resquícios autoritários, ideais de fraternidade, de revolução, visões díspares de como lidar com o capitalismo e a democracia.

Nos primórdios foram convenções intermináveis, decisões fiscalizadas. A exaustão desta democracia permanente restringiu os encontros, as discussões e por fim as convenções ao simples voto em listas de tendências. As vitoriosas exerciam o poder, delegando a grupos dirigentes as decisões e progressivamente a funcionários profissionalizados que geriam as finanças e as políticas. O processo de delegação sucessiva afastou o PT de seus princípios: participação e transparência.

Na Articulação, comandada por José Dirceu, o fisiologismo floresceu com filiações sem critério, com o viés autoritário, para obter postos-chave em sindicatos, diretórios e prefeituras. Formou-se um autêntico poder paralelo, com autonomia em relação ao conjunto da militância e aos dirigentes de outras tendências.

Como ensina a História, o pragmatismo exercido por profissionais, a mão-de-ferro e o abandono de utopias substituem os ideais de militantes sem vocação para exercer o poder no mundo "real". O poder funciona como uma droga que entorpece princípios, que dilui limites, que se converte num fim em si.

Uma política de alianças não é condenável numa sociedade democrática e plural. Mas há que escolher os aliados, estabelecer programas comuns, partilhar a gestão, tornar públicos os acordos, as políticas financeiras, ambientais e sociais. O inchaço inexplicável de partidos aliados, a ocupação desproporcional do espaço dos ministérios pelo PT, a aliança com figuras sinistras, como Roberto Jefferson, a contratação milionária de Duda Mendonça foram sinais evidentes que a militância, a sociedade e a mídia não captaram devidamente. O Romanée Conti que Duda ofereceu ao presidente operário foi um símbolo de cooptação do seu desejo; a apropriação da imagem (na TV) capturou a alma (do PT). Os charutos Cohiba do tesoureiro Delúbio Soares não desnudaram os encontros indecentes, encobertos por uma cortina de fumaça.

O mais grave foi monetarizar a relação política - uma aplicação torpe de "O Capital" (Karl Marx) na qual tudo se converte em mercadoria. Não foram escolhidos aliados, mas sócios de negócios, que hoje denunciam não a prostituição das alianças, mas o calote de parte dos milhões prometidos ou de cargos em estatais que permitiriam a apropriação do butim estipulado. O atendimento de emendas de parlamentares da base, para construção de estradas e escolas nos seus municípios, seria adequado à lei orçamentária; mas o superávit primário de 5,25% de Palocci inviabilizou esta via; aí entraram as emendas extra-oficiais do valerioduto, criando um superdéficit moral.

A última esperança do PT é que Tarso Genro tenha força para promover uma profunda despoluição, não poupando qualquer dirigente comprometido com este vergonhoso amesquinhamento monetário dos ideais de justiça, por mais que estes tenham dedicado as vidas às lutas sociais; estes não tinham o direito de promover tamanha lambança, que solapou as esperanças de milhões de estudantes, artistas, trabalhadores que acalentaram este sonho bonito, convertido num pesadelo cruel. Tarso nos contou que não sabe o que ainda poderá aparecer em fundos e estatais; a atual direção não tem idéia da dimensão destes tentáculos.

A defesa dos dirigentes deste esquema tenta preservar responsáveis por vitórias eleitorais, mas condena o PT e o governo ao abraço dos afogados. Muitos militantes e parlamentares chegaram ao limite. É triste ver este patrimônio dilapidado; a direita trama o impedimento de Lula, que é golpe, enquanto o PT segue corroído por disputas internas insanas. Só uma vigorosa mobilização de militantes possibilitaria a limpeza e a refundação do PT. Uma Constituinte exclusiva poderá realizar uma reforma política radical. O fim do troca-troca de partidos obstruirá parte da corrupção, assim como a drástica redução dos custos das campanhas eleitorais.

A vida continua, o povo é maior do que os partidos, ninguém é insubstituível, as batalhas cotidianas com ONGs, associações, sindicatos não vão acabar. Que a imensa dor e a vergonha não nos impeçam de partilhar das angústias dos excluídos, dos discriminados, dos atingidos pelas poluições do ar, das águas e da política.

CARLOS MINC é deputado estadual (PT-RJ).

A última esperança do PT é que Tarso possa fazer uma profunda despoluição