Título: Mais rico e mais desigual
Autor: Luciana Rodrigues/Carlos Vasconcellos
Fonte: O Globo, 26/08/2005, Economia, p. 23

Economia cresce no mundo, mas ONU diz que aumenta disparidade entre países e pessoas

Num momento em que o mundo comemora o terceiro ano seguido de forte crescimento econômico, a ONU fez ontem um duro alerta de que os benefícios desse avanço não estão chegando a quem mais precisa. Pela primeira vez, as Nações Unidas dedicaram um relatório ao tema desigualdade. E traçaram um diagnóstico sombrio. Constatou-se que, nas últimas décadas, cresceu a distância entre países ricos e pobres e a disparidade entre as populações mais abastadas e mais carentes de cada país. Além disso, ampliou-se a concentração nos Estados mais ricos e nos que estão em franca expansão econômica. Em qualquer perspectiva, o mundo ficou mais desigual.

Com o sugestivo título de "The Inequality predicament" ("A encruzilhada da desigualdade"), o relatório mostra que nas últimas quatro décadas a renda per capita dos 20 países mais ricos quase triplicou, chegando a US$32.339 em 2002. Enquanto isso, nos 20 países mais pobres do mundo, o rendimento subiu apenas 26%, e era de US$267 em 2002.

Além disso, de 73 países de diferentes níveis de desenvolvimento para os quais há estatísticas confiáveis, só nove conseguiram amenizar a desigualdade de renda interna entre as décadas de 1950 e 1990.

Combate à pobreza não é suficiente

Segundo o brasileiro Roberto Guimarães, da Divisão de Política e Desenvolvimento da ONU e principal autor do relatório, o objetivo era chamar a atenção para o fato de que só o combate à pobreza é insuficiente. Ele explica que, apesar de a desigualdade ser tema constante no Brasil - um dos três países com pior distribuição de renda do mundo - o assunto está ausente da agenda de desenvolvimento internacional. E lembra que nas Metas do Milênio - que os 189 membros da ONU prometeram cumprir até 2015 - há foco na pobreza e sequer menção à desigualdade.

- Mas se a desigualdade não for combatida explicitamente, tudo o que compõe a agenda social avançará muito lentamente, se avançar.

A China, diz o pesquisador, é o exemplo emblemático dessa contradição. O país é uma exceção, pois reduziu a pobreza em termos absolutos, de 876 milhões de pessoas vivendo com menos de US$1 por dia, em 1981, para 594 milhões em 2001. E, por tabela, graças ao gigantismo da sua população, levou a uma redução proporcional do número de pobres no mundo (de 40% para 21%).

Mas, também na China, a equação crescimento econômico e redução da pobreza não teve como resultado o alívio da desigualdade. Pelo contrário: mesmo no setor rural, o menos afetado pela modernização do país nos últimos anos, a disparidade cresceu. Há dez anos, os 10% da população rural mais rica tinham o dobro da renda dos 10% mais pobres. Hoje, têm rendimento 250% maior.

Na América Latina, que ao contrário da China viveu duas décadas de estagnação no fim do século XX, a pobreza ficou congelada e a desigualdade aumentou. No início dos anos 90, os 10% mais ricos dos países detinham até 45% da renda nacional. No início deste milênio, essa diferença subiu em oito nações, e o Brasil detém o recorde da região: os 10% mais abastados têm renda equivalente a 32 vezes o que ganham os 40% mais pobres.

EUA: concentração só igual aos anos 20

A região também perdeu espaço no mundo. Em 1980, América Latina e Caribe tinham renda per capita média de 18% dos rendimentos dos países mais ricos do mundo. Em 2001, os ganhos aqui eram de só 12,8% dos obtidos nas nações mais prósperas.

- Não conseguiremos promover as prioridades de desenvolvimento sem superar desafios da desigualdade dentro dos países e entre eles - afirmou José Antonio Ocampo, sub-secretário-geral para Assuntos Econômicos e Sociais da ONU.

Para Carlos Langoni, diretor do Centro de Estudos Mundiais da Fundação Getulio Vargas (FGV), a desigualdade maior no mundo reflete o novo padrão de crescimento, calcado em rápidas mudanças tecnológicas.

- É um fenômeno, infelizmente, quase que inexorável. Aqueles países e setores da economia que conseguem incorporar os avanços tecnológicos saem na frente.

Para Martin Hopenhayn, da Divisão de Desenvolvimento Social da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), os avanços da tecnologia - que ele chama de 3ª Revolução Industrial - acirraram as assimetrias do comércio:

- A abertura comercial, hoje, acontece com base em produtos de alto valor agregado, com uso intensivo de tecnologia. Isso aumenta a diferença entre os países desenvolvidos e os países pobres, pois estes exportam produtos básicos.

Mas não são só os países em desenvolvimento que sofrem com a maior concentração de renda. O relatório da ONU destaca que nos países ricos, sobretudo em Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, as desigualdades se acentuaram. Nos EUA, a pequena parcela de 1% dos mais ricos da população detém nada menos do que 17% da renda nacional. É uma concentração de renda só vista antes na década de 1920. Segundo Langoni, também entre os americanos as mudanças tecnológicas explicam a disparidade, já que exigem mão-de-obra extremamente qualificada.

Segundo a central sindical americana AFL-CIO, nos próximos dez anos os EUA deverão exportar cerca de 14 milhões de empregos.

Os hábitos de consumo também revelam desigualdades. Segundo a ONU, os 20% mais ricos do mundo têm 74% das linhas telefônicas e respondem por 45% do consumo de carne e peixes no mundo. Os 20% mais pobres ficam com somente 1,5% das linhas de telefone e 5% dos peixes e carne.

ABERTURA AUMENTA DISTÂNCIA ENTRE RICOS E POBRES, na página 24