Título: LÍDER MILITAR URUGUAIO PARTICIPOU DA REPRESSÃO
Autor: Janaína Figueiredo
Fonte: O Globo, 26/08/2005, O Mundo, p. 32

Chefe da Força Aérea admite que foi co-piloto de vôo que buscou opositores presos na Argentina na ditadura

BUENOS AIRES. Pela primeira vez desde a redemocratização do país, um alto chefe das Forças Armadas do Uruguai admitiu ter participado da repressão a opositores da ditadura militar (1973-1985). Numa inesperada revelação, o chefe da Força Aérea, comandante Enrique Bonelli, disse ter participado de um vôo que em 24 de julho de 1976 transportou 22 uruguaios detidos em Buenos Aires de volta a seu país. A declaração de Bonelli é prova contundente da existência da chamada Operação Condor, plano de ação conjunta das ditaduras do Cone Sul.

Os 22 presos uruguaios estavam no centro clandestino de tortura Automotores Orletti, localizado no bairro portenho de Floresta, e haviam sido seqüestrados numa operação orquestrada por militares argentinos e uruguaios. "Fui co-piloto do primeiro vôo", admitiu o comandante à revista "Búsqueda". Bonelli, na época primeiro-tenente, disse que foi realizado um segundo vôo em 5 de outubro do mesmo ano. " Eram missões que obviamente não eram normais. Sabíamos que eram ordenadas pelo Serviço de Informação de Defesa e pelo Comando-Geral", afirmou.

No primeiro vôo, foram transportados 22 integrantes do Partido da Vitória do Povo, que foram julgados e condenados pelo governo militar. Já os passageiros do segundo vôo teriam sido assassinados em território uruguaio. Na visão do senador Rafael Michelini, cujo pai, o líder político Zelmar Michelini, foi assassinado em Buenos Aires em 1976, a atitude adotada por Bonelli mostra que os militares finalmente decidiram colaborar.

- O chefe da Força Aérea deu mais do que pedimos, sua declaração é muito importante. Agora precisamos saber quantos vôos foram realizados, como foram assassinados nossos compatriotas - disse o senador ao GLOBO, por telefone.

Ministra: "Ser das Forças Armadas não dá impunidade"

A declaração de Bonelli foi feita em momentos em que os militares uruguaios enfrentam fortes pressões por parte do governo do presidente Tabaré Vázquez para entregar todas as informações existentes sobre os crimes da ditadura. O clima no país é de forte tensão. Semana passada, o ex-presidente Alberto Lacalle, líder do Partido Blanco (ou Nacional), afirmou que a repressão exercida pelos militares foi necessária para conter "a violência das forças subversivas". Lacalle, como todos os antecessores democráticos de Vázquez, deu ampla proteção aos militares. Durante seu governo (1990-1995) foi aprovada a Lei de Caducidade, que impede o julgamento de militares que atuaram nos anos de chumbo.

Já Vázquez não só deu forte impulso às investigações judiciais como conseguiu levar adiante ações inéditas no país, por exemplo, a realização de escavações em batalhões militares para procurar restos de desaparecidos. De acordo com dados oficiais, 164 uruguaios desapareceram na ditadura. Ontem, a ministra da Defesa, Azucena Berrutti, ex-advogada de presos políticos durante a ditadura, afirmou que pertencer às Forças Armadas "não concede direitos nem garante impunidade".

Silêncio rompido

Scilingo foi peça-chave na Argentina

BUENOS AIRES. Apesar do silêncio quase absoluto das Forças Armadas após o retorno da democracia na Argentina, em 1983, alguns militares optaram por dar informações sobre o sinistro esquema de repressão do governo militar (1976-1983). Um dos depoimentos mais importantes foi o do ex-capitão de corveta Adolfo Scilingo, condenado em abril, pela Justiça espanhola, a 640 anos de prisão. Em 1997, Scilingo reconheceu ter participado dos vôos da morte, durante os quais presos políticos eram atirados vivos ao mar. O ex-militar argentino admitiu ter atirado mais de 30 pessoas ao mar. Todos haviam sido torturados na Escola de Mecânica da Marinha (Esma), principal centro de tortura da ditadura argentina. Também revelou detalhes sobre o funcionamento da Esma, que teria recebido mais de cinco mil presos. E admitiu que ali havia uma sala de partos onde presas políticas tiveram filhos que foram entregues a famílias de militares. (J.F.)