Título: Uma cidade que nasceu no lugar errado
Autor:
Fonte: O Globo, 31/08/2005, O Mundo, p. 30

A DEVASTAÇÃO DO KATRINA: AÇÃO DO HOMEM PROVOCOU AFUNDAMENTO DE NOVA ORLEANS, QUE ESTÁ ABAIXO DO NÍVEL DO MAR

Região é cercada por rio e lago e não tem como escoar água que inunda suas ruas sem bombas de sucção

NOVA ORLEANS. Encaixada entre um braço do Rio Mississippi e um lago, Nova Orleans é considerada por cientistas um acidente à espera de acontecer. Unindo condições pouco adequadas à existência de uma cidade e uma enorme degradação ambiental, agravada nos últimos cem anos devido à indústria petrolífera do Golfo do México, desastres como o do Katrina ameaçam a própria existência da capital do jazz.

A costa americana do Golfo do México sempre foi vulnerável a tempestades, mas a ação do homem tornou as condições já ruins algo potencialmente desastroso. Nova Orleans foi fundada numa área em que o solo era lamacento e mudava de posição e que era constantemente afetada por tempestades e doenças. Ao mesmo tempo, numa época em que o transporte era feito principalmente pelos rios, a foz do Mississippi era o local ideal para uma cidade-porto.

Lodo jogado pelo rio mantinha nível da cidade

No século XVIII, os administradores coloniais franceses tornaram obrigatório que donos de terra construíssem diques nos braços do Rio Mississippi para tentar dominar as forças da natureza. Porém, o próprio controle de inundações acabou se tornando um problema. Grande parte do solo hoje ocupado por cidades no sul da Louisiana, como Nova Orleans, foi formado por lodo jogado pelo Rio Mississippi. E somente inundações regulares de água e lama podem reforçar os sedimentos sob o solo e mantê-lo acima do nível do mar. Os projetos de canalização do rio, no entanto, direcionaram sua corrente para o fim de sua foz em forma de delta, atirando a torrente de sedimentos para o fundo do Golfo do México.

Com o estabelecimento da indústria petrolífera na costa no início do século XX, a estrutura de diques, represas e outras instalações aumentou muito.

Abby Sallenger, cientista do Centro de Estudos Geológicos, alerta para as conseqüências da degradação ambiental da região de Nova Orleans. Segundo ele, as ilhas são a primeira linha de defesa contra as ondas provocadas por furacões e tempestades. A segunda são os pântanos, que têm a capacidade de absorver grande quantidade de água.

Porém, sem os sedimentos que eram lançados pelo Rio Mississippi, a ilhas diminuíram muito nos últimos anos e os pântanos estão desaparecendo, segundo Sallenger. Ele calcula que o nível do mar na região do delta do Mississippi está aumentando um centímetro por ano em alguns pontos.

70% da cidade ficam abaixo do nível do mar

A cidade de Nova Orleans é, hoje, um convite para enchentes e inundações. Ao todo, 70% da cidade ficam abaixo do nível do mar, em profundidades que chegam a seis metros. Sem ter uma capacidade natural de escoar água, ocorre lá o "efeito tigela", como os moradores chamam o fato de a água que cai lá só sumir com a evaporação. Em qualquer chuva mais forte que caia sobre a cidade as autoridades locais colocam em funcionamento um sistema de bombas para retirar a água.

Um fator que agrava ainda mais o problema é o fato de Nova Orleans ficar não apenas entre mas também abaixo de um braço do Rio MIssissippi e o Lago Pontchartrain, o segundo maior lago salgado dos Estados Unidos. Apesar de haver um sistema de diques no lago, eles não resistem às ondas provocadas por furacões. Por estar num nível mais baixo, a lei dos vasos comunicantes faz com que a água continue jorrando para a cidade até chegar ao nível do lago, como ocorreu na grande enchente de 1965, quando parte da cidade permaneceu sob a água por dois meses.

Alagados na terra do jazz

Águas avançam no Bairro Francês

NOVA ORLEANS. Rachaduras num dique de contenção e problemas no sistema de drenagem faziam ontem com que as águas do Lago Ponchartrain fluíssem para o centro histórico de Nova Orleans, inundando de forma progressiva o Bairro Francês, um dos principais - e mais charmosos - destinos turísticos dos Estados Unidos.

Num primeiro momento, o centro da cidade e seu bairro mais famoso pareciam ter sido poupados da fúria do Katrina e da primeira inundação provocada pelo furacão. Mas a situação se deteriorava rapidamente.

No Bairro Francês, com seus prédios de varandas com grades cuidadosamente trabalhadas - herança das colonizações espanhola e francesa -, a água já chegava à altura da cintura e continuava a subir. Segundo um jornal local, a Bourbon Street e a Royal Street estavam inundadas.

As autoridades temem que a água suba vários metros, como ocorreu em outras áreas da cidade, que está com 80% de seu território alagado. Em muitos pontos, a água chegava aos telhados e moradores eram resgatados de helicóptero.

- A água vai continuar subindo até chegar ao nível do lago. Não sei o que as equipes de resgate vão fazer - disse a policial Julie Wilson à rede WWL-TV.

Cenário de filmes como "Coração Satânico", "A marca da pantera" e "Entrevista com o Vampiro", entre outros, Nova Orleans é ela própria um personagem - famosa pelo Mardi Grass (a Terça-Feira Gorda de Carnaval), pelo jazz e pelo vudu. Ontem ainda não era possível avaliar as condições de seus principais prédios.

Chegar à cidade era uma missão praticamente impossível, devido às águas e aos bloqueios policiais montados para evitar saques e que moradores tentassem voltar as suas casas. Nas imediações da maior cidade do delta do Rio Mississippi, o aspecto era fantasmagórico. Ao céu cinza se somavam árvores caídas, estradas inundadas, casas destelhadas e inundadas.

- A devastação é muito maior do que havíamos pensado - informou um funcionário da prefeitura.

As condições no estádio Superdome, onde 20 mil pessoas estavam refugiadas, eram críticas e ele estava para ser evacuado como os demais abrigos da cidade. Não havia água ou eletricidade, e o calor era intenso. Segundo a TV local, o clima era tenso e um homem havia se suicidado, jogando-se do alto de uma tribuna.

Nova Orleans enfrenta as águas do Katrina

NO OLHO DO FURACÃO

Eu não consigo encontrar minha mulher, ela se foi." O desespero de Harvey Jackson, morador de Biloxi, no Mississippi, emocionou os EUA. Ainda trêmulo, ele descreveu como perdeu sua mulher, que foi levada pela água, numa entrevista na TV. "Subimos para o telhado e a água simplesmente abriu a casa, dividindo-a. Eu não consigo encontrar minha mulher, seu corpo, ela se foi. Eu segurei sua mão tão fortemente quanto pude e ela me disse: 'você não vai conseguir me segurar'. Ela me falou: 'tome conta de nossos filhos e dos nossos netos'. Estou perdido, não sei o que farei."

Eu rezei como nunca." Sozinha em seu quarto na cidade de Slidell, Louisiana, e presa a uma cadeira de rodas, Fluffy Sparks, de 46 anos, começou a rezar quando a água chegou à altura de seu queixo. "Eu pedi a Deus: Não me deixe morrer no meio dessa água, aqui, sozinha." De alguma forma ela conseguiu subir na pequena mesa de madeira da cozinha. E então a água parou de subir. "Foi horrível e continua sendo horrível, mas eu estou respirando." Ela passou a noite sobre a mesa, somente com uma lanterna. Na manhã de ontem a água começou a baixar, deixando muita lama. E Fluffy esperou por ajuda.

Eu sei que ele sobreviveu." Nas horas que antecederam a chegada do Katrina, Patricia Penny implorou para que seu filho, Billy Penny, de 34 anos, abandonasse sua casa em Nova Orleans. Mas, temendo deixar seus cinco gatos e seu cachorro para trás, Billy decidiu ficar em casa, junto com sua namorada. Na última vez que conseguiu falar com o filho, Patricia teve más notícias. "Ele me disse: 'A situação está ruim. Uma magnólia enorme caiu em cima do portão e o vento destruiu o pátio. A água está subindo e agora é tarde demais para ir embora'." Mas a mãe diz ter certeza que o filho subiu no teto da casa e está a salvo. "Criei meus filhos. Conheço-os bem. Eu sei que ele sobreviveu."

A água subia e subia", contou Joy Schovest, que conseguiu sobreviver à inundação e ao desabamento de um complexo de edifícios em Biloxi, Mississippi, provocados pela passagem do Katrina. "A água abriu todas as portas e saímos nadando. Conseguimos ajudar uma senhora e retirá-la pela janela de sua casa. Fomos nadando com a corrente. Foi aterrador. Os automóveis flutuavam ao nosso redor e nós os empurrávamos para o lado, para continuar avançando", contou Schovest, que estava numa das regiões que registraram maior destruição.