Título: Bush diz que recuperação vai demorar anos
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 01/09/2005, O Mundo, p. 30

Autoridades afirmam que catástrofe não tem precedentes, priorizam remoção de cem mil pessoas e falam em mil mortos

WASHINGTON. O que a princípio era um desastre passou a ser visto ontem como uma catástrofe sem precedentes nos Estados Unidos. Aquilo que A. J. Holloway, o prefeito de Biloxi, no Mississipi, definiu como "a nossa tsunami" passou a ser encarado como uma tragédia de proporções históricas.

- Isto aqui parece Hiroshima. Está mais para Hiroshima do que para tsunami - disse Haley Barbour, governador do Mississippi, comparando os estragos do furacão Katrina no sul dos EUA àqueles provocados pela bomba atômica jogada na cidade japonesa na Segunda Guerra Mundial.

Minutos depois, o governo federal classificaria o fenômeno como um "incidente de significado nacional". Trata-se de definição acima da habitual "zona de calamidade pública" e que está sendo utilizada pela primeira vez na História do país.

Algumas imagens na TV justificavam a afirmação da governadora Barbour. Em meio ao caos, depois de consultar técnicos locais e da Agência Federal de Administração de Emergências (Fema), o prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin, aumentou a consternação do país e o desespero das vítimas ao informar:

- Os cálculos preliminares são de que os moradores poderão voltar a suas casas daqui a três ou quatro meses.

Cem mil pessoas ainda esperam para ser retiradas

No início da noite, o presidente George W. Bush - que sobrevoara a região ao antecipar em dois dias a volta de suas férias no Texas - anunciou um prazo ainda mais longo para a normalização da situação.

- Essa recuperação vai levar um longo tempo. Vai levar anos - disse em pronunciamento à nação, na Casa Branca.

Depois de assegurar às vítimas que fará tudo o que estiver a seu alcance para ajudá-las, o presidente disse que a força-tarefa criada por ele tem três prioridades:

- A primeira delas é salvar vidas. Estamos assistindo as autoridades locais na retirada de quem ainda está na área afetada - disse Bush, referindo-se a cerca de cem mil pessoas.

Por isso mesmo, como se viu ontem, as equipes de salvamento estavam deixando para depois o recolhimento de corpos sob escombros de casas que desabaram e mesmo aqueles que apareceram boiando nas ruas alagadas.

O número de mortos permanecia uma incógnita. Na Louisiana seriam pouco mais de cem. No Mississippi, a contagem extra-oficial indicava 110. No entanto, autoridades de ambos os estados diziam que a cifra poderia passar de mil.

- A segunda prioridade é manter vidas, garantindo alimentação adequada, água, abrigo e suprimentos médicos aos sobreviventes - disse Bush.

O Departamento de Transportes informou ter fornecido 400 caminhões para levar 5,4 milhões de refeições (caixas com alimentos que têm sido enviadas a tropas americanas no Iraque e em outras zonas de guerra), 13,4 milhões de litros d'água, 10.400 lonas impermeáveis, 1.500 toneladas de gelo, 144 geradores, 20 contêineres com suprimentos generalizados, 135 mil cobertores e 11 mil camas portáteis.

- Isto é só o começo - garantiu Bush.

Sete mil pacientes aguardam socorro em hospital

A terceira prioridade, disse ele, é um "esforço abrangente de recuperação", que abrange a restauração da energia elétrica (há cinco milhões de pessoas sem eletricidade na região), das linhas de comunicação - telefones fixos não estão funcionando e celulares funcionam em poucas áreas - e o conserto de estradas e pontes.

Cerca de 1.600 pacientes de três hospitais na Louisiana onde geradores de energia deixaram de funcionar por falta de combustível foram levados em barcos e helicópteros para outros estados. Restavam ainda sete mil à espera de socorro.

Enquanto o Pentágono enviava mais dez mil soldados da Guarda Nacional à região - onde oito mil já estavam a postos para prestar socorros às vítimas e conter saques - a Fema preparava um plano de longo prazo para abrigar os sem-teto, com uso de navios de passageiros, acampamentos provisórios, parques com trailers e os chamados dormitórios flutuantes - barcaças que a agência federal geralmente usa para alojar seus empregados.

NO OLHO DO FURACÃO

ELA SÓ DISSE: 'EU DESISTO!'." Judy Martin tentou tudo a seu alcance para salvar a mãe, a ex-professora Cecile Dupont Martin, de 95 anos. Na casa inundada, Judy ainda tentou respiração boca a boca, e não conseguia levar a mãe para fora. Cecile acabou morrendo afogada dentro da própria casa. Depois disso, Judy nadou até a casa do vizinho, onde foi resgatada na terça-feira. Depois de ser levada para terra seca, onde a estrada começava a surgir e as equipes de resgate deixavam seus barcos, a filha caiu de joelhos, encostou a testa no chão e começou a chorar.

PARECIA A RETIRADA DO VIETNÃ", disse Samantha Rumby, que passou três dias sem água corrente, eletricidade ou comida quente, até resolver fugir de seu apartamento em Metairie, um subúrbio de Nova Orleans. "Quando chegamos havia uma fila de ambulâncias ao lado da Interstate 10. Os helicópteros traziam as vítimas da inundação e se podia ver crianças pelas portas abertas. Havia helicópteros por toda parte." Conforme Rumby dirigia para oeste, outra cena chamou a sua atenção. "Havia gente pedindo carona. Pessoas com mochilas, famílias inteiras carregando bebês."

TENTAMOS DAR A ELES o que precisam para sobreviver porque sabemos que perderam tudo", contou Susan Nation, a gerente do Hotel Comfort Inn, em Atlanta, que se dividia entre providenciar comida para seus hóspedes adultos e fraldas para as crianças. A maioria dos 155 quartos do hotel estava ocupada por pessoas que deixaram suas casas devido à devastação causada pelo furacão Katrina, e que recebiam um desconto de 75% no preço das diárias. Um restaurante próximo fornecia refeições de graça. "É uma situação muito triste", contou Susan, com lágrimas nos olhos.

QUANDO VOCÊ CAMINHA PELA tempestade, levante suas mãos e não tenha medo do escuro." A frase faz parte da letra de uma música interpretada pelo cantor John Boutté e é onde ele busca forças para suportar a tragédia. Sua mãe e irmãos estão desaparecidos desde a tempestade. Boutté esteve com outros 32 músicos de Nova Orleans por dez dias no Brasil, fazendo apresentações em São Paulo. Agora, sem casa, carro e notícias de familiares, ele procura abrigo na casa de parentes em outras cidades e tenta manter a esperança. "É o que me faz continuar vivo."

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