Título: DISTORÇÕES NO CENSO ESCOLAR BRASILEIRO
Autor: Sebastian Edwards
Fonte: O Globo, 02/09/2005, Opinião, p. 7

¿Não preencham `raça humana¿ tampouco `raça brasileira¿: só podem ser utilizadas as categorias do IBGE.¿ Assim dirigiu-se uma orientadora educacional aos alunos numa escola da periferia do Rio de Janeiro. Em colégio da Zona Sul, a diretoria e o conselho de pais recusaram dar, sobre seus alunos, qualquer informação referente ao quesito raça/cor do Censo Escolar do MEC 2005. Situação distinta ocorreu em Belo Horizonte, onde uma diretora de escola resolveu alterar todas as fichas dos estudantes que optaram pela cor ¿parda¿, convertendo-os em ¿pretos¿.

Fato insólito aconteceu no Ciep 445, situado na comunidade Buraco do Boi, em Niterói. Uma professora entrou na secretaria bem a tempo de acompanhar uma discussão entre dois funcionários. Ambos tentavam definir a ¿raça/cor¿ dos alunos através de suas fichas de matrícula. Com uma foto em preto-e-branco e meio amarelada nas mãos, perguntaram: ¿De que maneira você definiria essa pessoa: `negra, branca ou parda?¿¿ Apesar da contrariedade da professora, que indagava sobre a relevância de tal método, apenas disseram: ¿Temos pressa em responder aos formulários e enviá-los de volta.¿

Esses cenários apressados fazem parte do ¿espetáculo das raças¿ suscitado pelo processo de aplicação do censo do MEC. Quem visitar a página do Inep encontrará informações sobre os critérios utilizados para embasar a introdução da pergunta sobre ¿raça/cor¿; tudo precedido pela palavra de ordem: ¿Mostre sua raça, declare sua cor.¿ Todavia, para ¿mostrar a raça dos alunos¿, o MEC se limitou a enviar o censo às escolas, indicando na abertura a nova ¿política racial¿. A capa apresenta um desenho com quatro crianças devidamente diferenciadas: uma menina japonesa, um menino branco, um menino índio e, ao centro, uma menina negra. É a criança negra (à frente das demais) que apresenta um detalhe revelador: segura um livro com um título significativo ¿ História da África. O objetivo parece claro: destacar que a diversidade brasileira é protagonizada pela ¿raça negra¿.

No texto de apresentação, informa-se que a inserção do quesito raça/cor visa à ¿igualdade racial¿, demanda ¿de setores organizados da sociedade¿, tendo em vista ¿o conhecimento das situações de injustiças e discriminações e para o estabelecimento de políticas de correção das desigualdades e de promoção da cidadania.¿ Como se vê, estamos diante de um censo cujos resultados parecem conhecidos de antemão por seus mentores.

A temporada de ¿políticas raciais¿ que assola o país, a exemplo das cotas raciais em certas universidades, tem a virtude de dar maior visibilidade à discussão sobre o racismo no Brasil e as distintas formas de enfrentamento do problema. No caso do ¿Censo Racial do MEC¿, causa espanto que em nenhum momento se defina o que vem a ser o quesito ¿cor/raça¿. Ao contrário, esse ¿novo conceito¿ (constituído por termos que não são sinônimos entre si) parece não merecer maiores explicações. Tal postura chama ainda mais a atenção, uma vez que existe um ¿glossário¿, ao final do formulário do censo, que, apesar de definir uma série de termos ¿ autismo, deficiência auditiva, cegueira ... ¿- não faz menção ao conceito ¿raça/cor¿. Tudo se passa como se a ¿verdade do inquérito¿ e a ¿verdade do conceito¿ falassem por si sós.

Indo além, se o Censo do MEC visa a anotar as desigualdades sociais, por que não coletar dados socioeconômicos dos alunos? Causa espécie, ainda, a inexistência de instruções de como a variável ¿cor/raça¿ deve ser coletada ¿- o que vem ocasionando uma série de embaraços como os que descrevemos acima.

Na verdade, os representantes do MEC partem de um raciocínio circular: se pobreza está associada a ¿raça¿, então toda questão educacional que evidencie problemas de acesso ou aprendizagem, especialmente na escola pública, implica exclusão (racial) e, por conseguinte, a necessidade de adoção de ¿políticas raciais¿ em nome da promoção social.

Há entre geneticistas largo consenso que raça é um conceito pouco consistente. Por outro lado, o abuso, mais do que o uso, tornou a máxima de que ¿raça é uma construção social¿ moeda corrente das políticas racialmente orientadas no país. Crianças e adolescentes, que devem ser guiadas pelo princípio da universalidade e da cidadania, poderiam estar apreendendo que raça é um produto do racismo: conforma um ¿conceito tóxico¿, como afirma Paul Gilroy, pois contagia o tecido social. Esperamos que os tempos da racialização que vem acometendo o Brasil tenham vida curta.

MARCOS CHOR MAIO é sociólogo e pesquisador da Fiocruz. LILIA MORITZ SCHWARCZ é professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo.