Título: LOBO OU CORDEIRO?
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Fonte: O Globo, 01/11/2004, O País, p. 4

O presidente nacional do PT, José Genoino, logo depois de o resultado oficial do segundo turno revelar a derrota do PT, fez duas análises distintas sobre as causas: uma instigante e criativa, que levaria necessariamente a mudanças profundas no modo petista de atuar no governo; outra, quase ingênua, que não leva a lugar algum. Infelizmente para o PT em particular, e para a política nacional, Genoino resolveu se ater mais à segunda, deixando de lado a análise inicial que, por se restringir aos defeitos do PT no governo, parece ter sido abandonada pela outra, que procura encontrar culpados em razões que estão fora do controle do próprio partido e, portanto, acontecem como um fenômeno da natureza, que não se pode evitar.

Fazendo isso, provavelmente o PT deixará de corrigir seus próprios erros e tornará ainda mais difícil o caminho para a reeleição do presidente Lula em 2006. A análise oficial da derrota de Marta Suplicy que prevaleceu foi a de que seu adversário foi hábil em explorar a rejeição à prefeita que existia na população, fruto de um preconceito por ser ela uma mulher atuando em um meio predominantemente masculino.

Explorar a rejeição do adversário, vamos e venhamos, é o que se faz em qualquer campanha eleitoral que se queira vencer. Não se falou explicitamente, mas a maior responsabilidade pela derrota é atribuída ao fato de Marta ter se separado do senador Eduardo Suplicy em pleno mandato, e ter se casado com Luis Favre, o que não teria sido aceito pelo eleitorado.

Ora, preconceito contra mulher não existe na capital paulista, que já elegera Luiza Erundina e a própria Marta, contra todos os demais candidatos masculinos. Provavelmente a troca de Suplicy, um político adorado pelos paulistas, por um franco-argentino (aí sim, nessa designação geográfica, há um acentuado preconceito contra o argentino que ¿roubou¿ a mulher de Suplicy) tenha tido uma má receptividade no eleitorado paulista. Mas nada que impedisse uma boa avaliação da atuação da prefeita na gestão do município.

A culpa de Favre, se há alguma, está mais na orientação geral da campanha, à qual imprimiu um tom agressivo que não foi de agrado do eleitorado. O confuso projeto político ficou claro quando a candidata rejeitou a aliança com o PMDB por questões morais e depois aceitou o apoio do ¿nefasto¿ Maluf. E aí entra a outra análise, esta sim conseqüente, mas, pelo visto, abandonada pelo PT, pelo menos quando se trata de declaração pública.

José Genoino identificou em um primeiro momento como razão principal da derrota petista uma bem-sucedida campanha da oposição para instalar no país um clima antipetista, baseada na acusação ¿ que ele diz infundada ¿ de que o partido é autoritário e não sabe fazer alianças políticas. Ou melhor: faz alianças apenas quando não coloca em risco sua hegemonia, e não cumpre os acordos feitos.

O presidente do PT tem razão de temer que essa face petista se sobreponha à outra, a da paz e amor que caracterizou a campanha presidencial vitoriosa que levou Lula ao Palácio do Planalto. Os partidos aliados saíram da eleição municipal muito machucados com o que seria um apetite voraz do PT.

Mas o autoritarismo do PT não estaria patente apenas nas alianças políticas, mas em algumas iniciativas do governo, como a tentativa de controlar a imprensa e as produções culturais com a criação de conselhos estatais, e em declarações de ministros que deixariam à mostra uma face política radical que estaria apenas aguardando um bom momento para se manifestar mais claramente.

Uma vitória esmagadora do PT nas eleições municipais, por exemplo, seria o pretexto para explicitar políticas de caráter socializante por que ainda anseiam alguns membros do governo. Um exemplo disso seria o novo livro do ministro da Educação, Tarso Genro, intitulado ¿Esquerda em progresso¿. Tarso propõe nada mais, nada menos, que o rompimento com o que chama de ¿globalização financeira¿, e novas alianças políticas internacionais que possam sustentar um projeto nacional de caráter socializante.

Essa ruptura todo mundo sabe do que se trata: calote no que o ministro chama de ¿neorentismo especulativo¿. Além de Cuba, que mais precisa de ajuda do que pode ajudar, não consigo enxergar qualquer outro país que possa sustentar tamanha aventura, já que até a China dita comunista está entregue à ¿globalização financeira¿ e a Albânia de Enver Hoxa não existe mais, para tristeza do ministro.

O ministro Tarso Genro defende ainda a democracia direta à la Hugo Chávez, com a ¿exacerbação da consulta, do referendo, do plebiscito e de outras formas de participação¿. E, por fim, propugna pelo controle dos meios de comunicação através de conselhos de Estado, que aplicariam regras para permitir que, finalmente, a liberdade de informação existisse no país, pois, no pensamento do ministro, hoje a liberdade de informação e opinião está ¿totalmente comprometida pela verdadeira ocupação que as elites fizeram dos meios de comunicação mais potentes e incidentes sobre a vida cotidiana¿.

A cada explicitação de pensamentos como esse, a cada disputa ¿ o único setor que vai dando resultados neste governo -¿ cristaliza-se na opinião pública, especialmente nas classes média e alta que votaram em Lula, um temor de que o que seria o ¿verdadeiro PT¿ ainda venha a prevalecer no governo. Lobo em pele de cordeiro.

Assim como para chegar ao poder Lula teve que ampliar suas alianças a ponto de buscar um vice no PL dos evangélicos, e apoios nas oligarquias nordestinas do PFL e do PMDB, terá que deixar de lado mais claramente antigas alianças com movimentos sociais como o MST, ou com a esquerda socialista, para governar com setores mais amplos da sociedade.

Se não o fizer, correrá o risco de ver-se rejeitado pelo mesmo eleitorado que o acolheu em 2002, que o fez pela primeira vez superar os 30% de votos em que se situava historicamente. Na eleição municipal isso já ocorreu, especialmente em Porto Alegre e São Paulo.