Título: Cassar e mudar
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 03/09/2005, O Globo, p. 2

Ao sinal de que as cassações vão ocorrer, a fúria da opinião pública deve amainar, embora seus militantes continuem cobrando - por e-mails, blogs, cartas de leitores, cartas aos parlamentares - mais nomes e esclarecimentos. A cassação acompanhada da perda dos direitos políticos é uma pena dura mas pouco representa como profilaxia dos males do sistema.

Se não forem feitas as reformas necessárias, a degola servirá apenas para que tudo continue como sempre foi. Surgirão esquemas de corrupção mais sofisticados e seguros e o caixa dois, este segredo de polichinelo que tantos fingem ter descoberto agora, continuará sendo praticado com mais dissimulação.

Dos 180 deputados que já perderam o mandato de 1945 para cá, a própria Câmara cassou 33. Ficam fora os 147 cassados pela ditadura. Destes 33, 14 foram vítimas de um expurgo macartista: eram do PCB, que tivera seu registrado cancelado em 1947. Restam 19, cassados por atentado ao decoro, categoria que comporta infrações tão diversas como posar de cueca (Barreto Pinto, cassado em 1948) ou faltar em demasia (dois gazeteiros foram cassados por isso em 1989). Apenas um processo de cassação, entretanto, produziu mudança qualitativa nas práticas político-legislativas. Foi o dos anões do orçamento, que fez rolar seis cabeças. A CPI, como agora, havia pedido 18. A seguir foram adotados procedimentos de maior rigor e transparência na votação do Orçamento, ainda que na Comissão Mista continuem acontecendo acordos e negociações na madrugada, jamais comentados fora daquela sala.

Antes, ocorrera a cassação de Jabes Rebelo. Seu irmão, traficante, fora preso portando uma carteira falsa de funcionário da Câmara. Depois do caso dos anões, veio o escândalo do PSDólar, em 1994. Três deputados foram cassados porque teriam recebido US$30 mil para trocar de partido, engordando o PSD, um satélite quercista. Nem por isso deixaram de ocorrer mudanças partidárias com estímulo financeiro. Suspeita-se que parte do dinheiro do valerioduto estimulou migrações para partidos da base governista.

Sergio Naya foi cassado em 1998 porque, como empresário, construiu um prédio podre que desabou na Barra, matando muita gente. Em 1999, foi cassado Hidelbrando Paschoal, chefe do crime organizado do Acre, hoje preso e condenado a mais de 50 anos. Mas a legislação continua não exigindo dos partidos um exame rigoroso dos antecedentes de seus candidatos.

A degola, portanto, pode servir para aplacar as iras, depois de três meses de ódio destilado pela oposição e pela mídia contra os que receberam dinheiro de Delúbio-Valério. Mas nada significará se estes catões da República que comandam o processo - muitos deles experientes praticantes do caixa dois eleitoral, por exemplo - não aprovarem as reformas e os remédios necessários.