Título: CULPADOS CASO SEJAM VÍTIMAS
Autor: Antonio Werneck e Gustavo Goulart
Fonte: O Globo, 04/09/2005, Rio, p. 17

Presos são obrigados a assinar declaração responsabilizando-se por sua integridade física

Apesar de leis que obrigam o estado a zelar pela proteção do detento, presos são obrigados a assinar uma declaração na qual assumem total responsabilidade por sua integridade física na carceragem da Polinter, no Centro do Rio. A denúncia formal, que ainda inclui ¿tratamento cruel, desumano e degradante¿, foi apresentada semana passada à Organização das Nações Unidas (ONU) por quatro entidades: Justiça Global, Laboratório de Análise da Violência da Uerj, Grupo Tortura Nunca Mais e Associação Pela Reforma Prisional (ARP) do Rio.

O documento ¿ um dossiê de oito páginas, com fotos das condições em que os presos estão vivendo na Polinter ¿ foi enviado a Genebra, na Suíça, para Manfred Nowak, relator especial sobre tortura e outros tratamentos cruéis do Centro de Direitos Humanos da ONU. São descritas minuciosamente as condições desumanas e degradantes em que 1.600 presos estão confinados em 21 celas, cada uma delas com cerca de 12 metros quadrados. Dentro das celas a luz do dia não chega, o espaço é extremamente apertado e a temperatura ambiente na semana passada ultrapassou os 40 graus. A carceragem tem capacidade para 400 presos, segundo a Polícia Civil, ou 250, de acordo com as entidades de direitos humanos.

Foi incluído no documento o texto que os presos assinam: ¿DECLARAÇÃO: Assumo total responsabilidade sobre a minha integridade física ao optar em permanecer no xadrez, no qual predomina a facção denominada Comando Vermelho¿. O texto da declaração é impresso através de um carimbo. O relato e as imagens lembram em muito as condições (descritas pelos historiadores) em que os escravos eram mantidos em calabouços, em 1693, no Rio de Janeiro. A maioria dos presos na Polinter é negra.

Historiador: Estado adota pena de morte

O historiador e pesquisador Marcelo Freixo, da ONG Justiça Global, disse que é preciso urgentemente discutir o quanto o sistema penitenciário, que começa na Polinter, solidifica e consolida a pena de morte social para os detentos:

¿ O Estado abriu mão de qualquer perspectiva de reinclusão destas pessoas. É um instrumento cruel de ¿monstrificação¿. É necessário que o poder público inicie um trabalho de classificação dos detentos e que a sociedade entenda que o que acontece no sistema penal deve ser encarado como um problema público. A obrigação do preso de assinar uma declaração retrata como o Estado não cumpre a lei.

Sandra Carvalho, do Justiça Global, lembrou nunca ter visto nada parecido com a Polinter no país:

¿ É uma situação calamitosa. Tenho visitado muitos presídios do país e a situação dos presos na Polinter é muito pior. Só é comparável com a penitenciária de Urso Branco (presídio de Porto Velho), quando aconteceu o massacre (em 2004, 14 presos foram mortos na penitenciária).

O secretário Nacional de Direitos Humanos, Mário Mamede, se disse indignado com a situação:

¿ A responsabilidade sobre a guarda do preso, condenado ou não, é do Estado, através de seus órgãos estaduais. Ou na esfera federal. Causa-me espanto, indignação, que, através de um papel que não tem sustentação legal, o Estado pretenda se subtrair desta responsabilidade. Mal comparando, é a mesma coisa que um empregador obrigar o seu empregado a assinar um documento que o responsabilize por algum acidente que venha a sofrer.

Mário Mamede disse ainda achar que a solução para o problema da rivalidade entre facções criminosas deva surgir de outras alternativas:

¿ Se a Polinter está em condição de insuficiência, seja estrutural ou de pessoal, não é isso que vai resolver o problema ¿ disse Mamede.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º , assegura aos presos ¿o respeito à integridade física e moral¿; enquanto a Lei de Execuções Penais, no artigo 40, obriga ¿a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios¿. Para Julita Lemgruber, da Associação Pela Reforma Prisional (ARP), as condições da Polinter são chocantes e foram constatadas, em dezembro de 2002, por médica sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz, contratada pela ARP. Segundo ela, a médica escreveu em seu relatório: ¿A condição dos detentos desta instituição é de privação máxima: amontoamento, ausência de ar, promiscuidade, mau cheiro, inexistência de qualquer privacidade, desconforto radical. Pode-se afirmar que estes presos estão vivendo uma situação de tortura física e mental¿.

¿ No caso do presos da Polinter, o Estado quer se eximir de culpa na eventualidade de uma tragédia ¿ diz Julita Lemgruber.

A carceragem da Polinter é uma das principais concentradoras de presos do Rio. Para lá deveriam ser levadas, enquanto não são condenadas, todas as pessoas presas acusadas de assassinatos, tráfico de drogas, seqüestros, assaltos e furtos. Somente este ano três presos foram mortos e cerca de cem, todos já condenados, aguardam transferência para cumprirem suas penas em presídios.