Título: Depois da tragédia, a degradação da alma humana
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 04/09/2005, O Mundo, p. 39

Ausência de poder do Estado rompe sociedade organizada e deixa sobreviventes à mercê da barbárie de seus semelhantes

Primeiro foram os saques a farmácias e lojas de conveniência. Remédios, água e comida. Depois, começaram a aparecer caixas de cerveja abarrotando carros nas partes não submersas de Nova Orleans. Em questão de horas, joalherias e bares do turístico Bairro Francês passaram a ser o alvo. Começaram os casos de assaltos a casas abandonadas e a pessoas. Relataram-se espancamentos. Nos centros que reúnem refugiados, como o estádio Superdome, comida começou a ser roubada e, na sexta-feira, houve estupros. Helicópteros dos bombeiros que tentavam resgatar pacientes num hospital sem energia elétrica foram recebidos a tiros por assaltantes. No Centro de Convenções da cidade, seis esquadrões com 11 policiais cada um foram impedidos de entrar por bandidos armados.

À fúria da natureza, que varreu a costa de Louisiana, Mississippi e Alabama com o furacão Katrina, seguiu-se um processo de degradação humana que, para muitos, lembrou uma espécie de retorno ao estado de natureza, condição descrita pelo filósofo político inglês Thomas Hobbes como a fase do ser humano anterior à organização social. Como no livro ¿Ensaio sobre a cegueira¿, do escritor português José Saramago, em que uma epidemia de cegueira lançou uma cidade no caos devido à ausência de comando, cenas de vandalismo, banditismo e violência se multiplicam e a vida em sociedade acaba, ou se transforma numa guerra.

¿Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens¿, escreveu Hobbes em seu livro ¿Leviatã¿, publicado em 1651. ¿Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há justiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais.¿

¿Necessidade do poder coercitivo do Estado¿

Hobbes, no entanto, possivelmente se surpreenderia com os acontecimentos numa das maiores cidades do país mais rico do mundo. No mesmo livro ele afirma que a Humanidade nunca passou pelo estado da natureza.

Especialistas consultados pelo GLOBO afirmam que as interações humanas em momentos de crise quando não existe um poder com força suficiente para se impor podem degenerar-se.

¿ É a lei do mais forte. O poder coercitivo deixou de existir. A sensação de impunidade permite que as pessoas tentem satisfazer seus desejos mais imediatos. Por que deixar de beber cerveja? O dono da mercearia está morto, não há policiais para impedir ¿ disse Williams Gonçalves, professor de relações internacionais da UFF. ¿ Isso mostra a necessidade do poder coercitivo do Estado.

Gonçalves ressalta que, ao contrário do que está ocorrendo nas áreas afetadas, a população americana está demonstrando solidariedade, doando alimentos, roupas e dinheiro.

¿ Onde o Estado continua organizado, a sociedade está disciplinada, há sentimento de solidariedade e compaixão. Agora, onde não há Estado, as paixões vêm à tona. Essa história que vemos nos filmes, primeiro idosos e crianças, isso não existe.

Desigualdade econômica alimenta crise da sociedade

O sociólogo José Vicente Tavares dos Santos concorda com o fato de a ausência da coação institucional tornar possível cenas como as de Nova Orleans, e cita como exemplos as greves policiais em alguns estados brasileiros em 1997, 1999 e 2001, ou mesmo áreas carentes do Rio.

¿ Isso mostra uma crise das relações sociais na sociedade contemporânea. A falta de controle social democrático permite que apareça uma latente crise das relações sociais. O único recurso passa a ser um Estado policial, que é contrário à democracia, ao contrato social no qual o cidadão delega poder ¿ critica ele.

Tavares dos Santos, presidente da Associação Latino-americana e Sociologia, diz que há uma crise da sociedade contemporânea, provocada não apenas pela pobreza, mas principalmente pela desigualdade:

¿ Alguns chamam de modernidade líquida, são instituições como generosidade, solidariedade se liquefazendo. Uma perda da herança do Iluminismo.

Tom Dwyer, sociólogo neozelandês radicado no Brasil, concorda, dizendo que o fato de as pessoas se sentirem em desvantagem social é por vezes mais significativo que a pobreza em si. Mas alerta para o fato de a tragédia não necessariamente provocar reações como a de agora.

¿ Não precisa ser assim. No apagão de Nova York em 1965, nada houve. Em 1977 houve outro apagão, que teve resultado contrário. Na tsunami, não houve registro de saques. No Iraque, os saques foram generalizados.

A afirmação de Dwyer foi muito usada durante a semana por pessoas envolvidas na operação de resgate da tsunami no sul da Ásia.

¿ Estou enojada. Depois da tsunami, nosso povo, mesmo quem perdeu tudo, queria ajudar os outros que estavam sofrendo ¿ disse Sajeewa Chinthaka, moradora de Colombo, no Sri Lanka, o país que, proporcionalmente, foi mais afetado pelo maremoto, à agência Reuters. ¿ Com o que está acontecendo agora nos EUA podemos ver facilmente onde a parte civilizada da população mundial está.

Moacir Duarte, especialista em ações emergenciais da Coppe/UFRJ, diz que a violência e a barbárie em Nova Orleans são exceção e não regra em grandes catástrofes, e talvez sejam reflexo da sociedade americana.

¿ Desde que o homem vive em sociedade a solidariedade, e não a barbárie, é a norma em grandes eventos catastróficos. Se não fosse isso, não sobreviveríamos. O que vemos em Nova Orleans é uma exceção, um provável sintoma do individualismo característico da sociedade americana.

COLABOROU: Leonardo Valente