Título: AMEAÇA QUE ATRAVESSA SÉCULOS
Autor: Helena Celestino
Fonte: O Globo, 04/09/2005, O Mundo, p. 36

Pedido de verbas é antigo

NOVA YORK. A crônica da catástrofe anunciada já vinha sendo escrita em Nova Orleans há décadas. Agressões ao meio ambiente, cortes de orçamento para a proteção contra furacões e diques mal conservados foram as contribuições dadas por governos, empresários e fazendeiros para ajudar o Katrina entrar feroz pelo Mississipi adentro, acabar com a mais original das cidades americanas e destruir um número ainda não calculado de vidas. A Costa do Golfo sempre foi sujeita a catástrofes naturais, mas os homens deram uma boa ajuda para piorar a geografia.

¿ A cidade estava nua diante do mar ¿ disse indignado Mark Fischetti, editor da revista ¿Scientific Magazine¿.

As ilhas são a primeira linha de defesa da cidade quando a tempestade chega, a segunda são os pântanos, que absorvem as águas. Durante décadas, a atividade econômica foi erodindo essas proteções, reduzindo a areia nas ilhas da costa do Golfo, acabando com os alagados e, segundo os cientistas, fazendo todo o delta do Mississipi afundar.

¿ O nível do mar vem subindo um centímetro por ano, dez vezes mais do que a média mundial ¿ disse Abby Sallengey, um cientista especializado na Louisiana.

Desde o século XVIII, quando os franceses criaram Nova Orleans, foram inúmeros os alertas de que era um absurdo construir um porto numa superfície lamacenta, sujeita a tempestades constantes e ainda por cima abaixo do nível do mar. Mas numa época em que o transporte era feito por barcos, foi irresistível a colonização nas margens do Mississipi e, mais tarde, no século XX, as facilidades geográficas atraíram para a região petroquímicas, refinarias e fábricas que viviam em torno da exploração de petróleo no Golfo. Sabendo ou não, governos e empresários fizeram uma espécie de pacto com o diabo: trocaram ganhos econômicos por degradação ambiental.

¿ O debate sobre a vulnerabilidade de Nova Orleans a furacões atravessou o século¿ disse Fischetti

Os cientistas afirmam que a construção de diques e canais para controlar o Mississipi deu a ilusão de que o homem domara a natureza. Mas o intricado sistema de barragens e bombeamento de águas não resistiu ao Katrina. O gerente do Army Corps of Engineers, o engenheiro Alfred C Naomi, há anos publicamente critica a falta de manutenção dos diques e, pouco antes da catástrofe, estava irritado com o corte de US$71 milhões no orçamento distrital de defesa contra catástrofes naturais este ano, que aconteceu no momento em que o serviço de meteorologia anunciava uma temporada de intensos furacões.

¿Os cortes tornaram impossível cumprir os contratos para melhorias vitais que fazem parte de um programa de longo prazo para renovar o sistema¿, escreveu ele em agosto no ¿New Orleans City Businesses¿.

Diante da catástrofe, Naomi evitou acusações ao governo federal mas reconheceu que sabia-se há muito tempo que o sistema não estava preparado para enfrentar furacões.

No entanto, pelo menos desde o início da década de 90 os cientistas da Universidade do Estado da Louisiana têm simulações de computador mostrando como o mar invadiria o sistema de barreiras e diques em caso de furacões. Brigas de interesses políticos e econômicos dificultaram um acordo, mas em 1998 conseguiu-se um projeto de consenso, chamado Coast 2050, a um custo estimado de US$14 bilhões, a serem gastos durante mais de uma década, mas que garantiria uma solução definitiva para a região. O Congresso, no entanto, preferiu financiar um programa de defesa na Flórida.

Desde 2001, os representantes da Lousiana têm pressionado por mais verbas para a proteção contra furacões do que Bush se propôs a conceder. Agora, diante da catástrofe, toda esta discussão orçamentária parece ridícula. Segundo Naomi, teria custado US$2,5 bilhões construir uma proteção capaz de resistir a furacões de grau 5, os mais furiosos. (Helena Celestino)