Título: Uma cidade a ser reerguida
Autor: Helena Celestino
Fonte: O Globo, 04/09/2005, O Mundo, p. 36

Recuperação de Nova Orleans desafia Bush em meio a furacão de críticas a sua atuação

Reconstruir Nova Orleans é por enquanto um sonho distante. O presidente George W. Bush reconheceu que poderá demorar anos e já tem gente que debate se a cidade deve mesmo ser reconstruída. As primeiras estimativas são de que nada custará menos de US$100 bilhões ¿ o mesmo gasto dos EUA em seis meses na guerra do Iraque ¿ mas muitos temem que Nova Orleans jamais volte a ser a mesma. Traumatizada moral e fisicamente, a cidade está inabitável, ainda terá de ser completamente evacuada e nos próximos três ou quatros meses a maioria de seus 500 mil moradores não poderá voltar para casa. A hora ainda é de contabilizar os prejuízos que não param de crescer, ajudar os refugiados, tentar colocar um pouco de ordem no caos e domar a violência que tomou conta da cidade.

Interrompendo o recesso de verão, numa sessão de emergência, a Câmara dos Deputados aprovou na sexta-feira a liberação imediata de US$10,5 bilhões para ajudar as vítimas do Katrina. Esta verba vai para as 14 agências mobilizadas pelo governo para coordenar a ajuda aos desabrigados, especialmente a Agência Federal de Gerenciamentos de Emergência (Fema), a Guarda Nacional e o Corpo de Engenheiros do Exército. Todas essas agências, supervisionadas pelo Departamento de Segurança Interna, tentarão mudar o clima de perplexidade e raiva que tomou conta dos Estados Unidos diante do testemunho de dramáticas cenas causadas pela lentidão no envio de socorro e pela falta de preparo para enfrentar um furacão previsto com mais de dois dias de antecedência.

Invejável patrimônio histórico e cultural

Para piorar as coisas, o líder da maioria na Câmera, Dennis Hastert ¿ com uma frieza incompatível com o momento ¿ levantou a hipótese de que Nova Orleans não precisaria ser reconstruída, pois seria bobagem gastar bilhões de dólares para reerguer uma cidade que fica dois metros abaixo do nível do mar, numa região sujeita a furacões. Para ele, seria repetir a teimosia dos que construíram e reconstruíram São Francisco e Los Angeles em cima de uma falha sísmica.

¿ Alguns lugares deveriam ser arrasados para sempre ¿ disse.

Hastert foi desautorizado até por Bush, e o Partido Republicado, em nota, informou que o momento era de estabilizar a situação. Mas despertou militantes de direitos humanos, que estão denunciando racismo e desrespeito à cultura negra, da qual Nova Orleans é um símbolo. Com um invejável patrimônio histórico e cultural, uma forte influência francesa, berço do jazz e sede do Mardi Gras, o carnaval americano, a cidade sempre reivindicou seu orgulho de ser diferente. Em placas dos carros, declara-se a ¿a menos americana das cidades americanas¿.

¿ É toda essa tradição que ousam pensar em destruir. São os pobres e negros que ficaram cinco dias à espera de socorro em condições insustentáveis ¿ critica Todd Eaton, um militante que assina a convocação para protestos contra o governo.

Uma catástrofe política para o presidente

Nova Orleans já havia sofrido catástrofes naturais antes ¿ a pior delas em 1969, quando o furacão Camille assolou a região do Mississippi. A cidade sofreu muitos danos mas se recuperou rapidamente porque não houve rompimento de diques nem inundações como aconteceu agora, causando uma devastação que está sendo comparada por especialistas à das tsunamis ou mesmo à de Hiroshima.

Não foi o suficiente para autoridades prestarem atenção nos avisos de cientistas de que a cidade não estava preparada para furacões. Numa série de reportagens em 2002, o jornal ¿New Orleans Times Picayune¿ fez um detalhado levantamento dos perigos que rondavam a cidade e, com impressionante riqueza de detalhes, cientistas previram exatamente o que aconteceu semana passada, com a passagem do Katrina. Eles alertavam que os diques se romperiam e que não havia plano de emergência.

¿Duzentas mil pessoas não conseguirão sair da cidade, milhares morrerão, as pessoas serão abrigadas no Superdome e isso se transformará num inferno, porque os paramédicos terão dificuldades para chegar¿, profetizou um dos cientistas da Universidade do Estado de Louisiana.

Bush não ouviu, e sexta-feira repetiu que ninguém poderia prever as fendas nos diques e o colapso no sistema de barreiras contra as águas. Katrina se tornou também uma catástrofe política para o presidente. Aproveitando férias de verão no seu rancho em Crawford (Texas), Bush e seus assessores foram acusados ¿ até mesmo por muitos republicanos ¿ de terem cometido um erro de avaliação sobre a gravidade da tragédia e de ter acordado tarde demais. A lenta reação da burocracia em Washington, agravada pelas férias dos funcionários de agências envolvidas na operação de socorro, permitiu que a situação se degenerasse e que até hoje, uma semana depois, Nova Orleans ainda seja uma cidade sem lei, castigada pela ação de saqueadores e com gente vagando sem comida, sem água e sem abrigo.

A política externa de Bush também entrou na berlinda. Muitos criticaram o fato de soldados da Guarda Nacional ¿ a força básica de intervenção em catástrofes naturais e na manutenção da ordem pública ¿ estarem lutando no Iraque, e não cuidando dos Estados Unidos. Num artigo no ¿New York Times", o analista Paul Krugman revelou que antes do 11 de Setembro, a Fema listou as três maiores catástrofes quer ameaçavam os Estados Unidos: um ataque terrorista em Nova York, um terremoto em São Francisco e um furacão em Nova Orleans, provavelmente o mais devastador dos três. ¿Por que Nova Orleans e o país estão tão despreparados?¿, perguntou Krugman.

Bush é acusado ainda de insensibilidade no seu primeiro discurso sobre a tragédia, terça-feira passada, quando rapidamente listou alguns números que a nação já conhecia e fez vagas promessas de intervenção, sem apresentar qualquer plano concreto. A tentativa de remediar foi ainda mais desastrosa. Quarta-feira, ele embarcou no Air Force One e sobrevoou imperialmente a cidade, olhando a devastação pela janela enquanto milhares de pessoas lá embaixo gritavam por socorro urgente. Só caiu na realidade sexta-feira. Tarde demais: o descontentamento com o presidente se espalhou pelo país, agravado pela disparada do preço da gasolina ¿ com o galão custando mais de US$3 e previsões de que poderia chegar a custar US$4. Um preço inaceitável para uma nação tão dependente do automóvel quanto a americana.