Título: Diários de uma viagem marcada pelo medo
Autor: Virginia Honse e Denise Marinho
Fonte: O Globo, 05/09/2005, O Mundo, p. 20

No desembarque de brasileiros que estavam em Nova Orleans, o relato de dias de angústia e insegurança

Três brasileiros que enfrentaram os horrores causados pelo furacão Katrina em Nova Orleans voltaram ontem para casa. Depois de vencer todas as dificuldades para deixar a cidade, o economista Jozé Cândido Sampaio de Lacerda Neto chegou às 10h10m no Aeroporto Tom Jobim, onde, mais cedo, às 8h30m, desembarcara o casal Antônio e Ângela Medalha, que estava como turista na cidade americana.

Jozé Cândido, que viajou a trabalho para Chicago, resolveu visitar Nova Orleans. Ele chegara à cidade na sexta-feira retrasada, pensando que poderia deixar o local no domingo, mas foi surpreendido pela tragédia.

¿ É bom estar de volta ¿ disse Jozé Cândido ao desembarcar, depois de abraçar a mulher, Letícia de Lalôr Vandystadt, que tinha a filha, Luana, de 7 meses, nos braços.

¿A tensão é grande, parece que a cidade vai explodir¿

O casal Medalha foi recebido em casa, no Leblon, com uma festa surpresa preparada pelos filhos e por amigos. Antônio reclamou da ¿incompetência e do descaso do governo americano¿.

¿ Tenho a sensação de que a cidade vai explodir. A tensão é grande ¿ disse.

Antes de Jozé Cândido desembarcar, Letícia se queixou do Itamaraty. Disse que os diplomatas ligavam para ela em busca de notícias, enquanto, a cada telefonema, ela esperava o contrário: receber informações sobre o marido.

¿ Eu não obtive qualquer auxílio por intermédio do Itamaraty ou da embaixada do Brasil. Eles me ligavam para pedir informações: onde ele estava, se ele havia telefonado. Fiquei chateada porque tinha esperanças de ser auxiliada em vez de ficar no papel de quem estava provendo informações ao Itamaraty.

Jozé Cândido deixara Chicago rumo a Nova Orleans no dia 26, pensando em aproveitar o fim de semana para conhecer a cidade. No dia seguinte, ele deixou o hotel onde estava para fazer compras e, ao voltar, defrontou-se com a ordem de evacuação do prédio. Ele conseguiu, então, uma vaga no Astor Crowne Plaza, onde ficou até quarta-feira, quando este hotel também foi evacuado. Nas ruas, enfrentou medo e insegurança por causa dos saques que via e dos tiros que ouvia.

¿ Os três últimos dias foram piores do que o próprio furacão. Havia crianças, senhores de idade e mulheres sem qualquer assistência ou atendimento. E nós, turistas, pensávamos: se para eles não há ajuda, imagina para nós!

O casal Medalha estava numa área turística nobre de Nova Orleans. No hotel onde se hospedaram, depois da passagem do Katrina, havia muitos carros da polícia ao redor, mais de 50, calcula Antônio.

¿ Nós nos sentíamos mais seguros com isso, mas os dias se passavam e percebemos que o hotel começava a receber pessoas que não eram hóspedes. Com isso, a comida e a água começaram a faltar.

Casal embarca em comboio e tenta fugir por Las Vegas

Em Belo Horizonte, a família de Carlos Daniel da Silva passou um domingo mais tranqüila após receber um telefonema dele. O último contato havia sido na quinta-feira passada.

Com a aproximação do Katrina, Carlos, a mulher, a americana Elisa Marble, e a filha Isabella Helan, de 9 meses, deixaram a casa onde moram em Long Beach, no norte da Louisiana, e seguiram para a residência do sogro no Alabama.

¿ Conseguimos chegar lá e comprar comida, água e gasolina. Voltamos para Long Beach no sábado à noite ¿ disse ele, por telefone ¿ Nossa casa não foi atingida, mas o lugar em que eu trabalho foi totalmente destruído.

Muitas famílias de brasileiros, no entanto, ainda vivem dias de apreensão. Em Belo Horizonte, Mariana Miranda aguarda notícias do pai, o economista do Banco Central Erivelto Oliveira Miranda. Ele e a namorada Alice Capociango foram passar três semanas nos EUA. A primeira escala era Nova Orleans, onde terminaram acuados pelo furação.

¿ No sábado ele ligou de uma rodoviária em Alexandria. Tinha saído de Nova Orleans em um comboio e foi para Baton Rouge. Acho que ele ia tentar ir para Las Vegas e seguir a viagem.

Distante do perfil dos brasileiros que foram afetados pelo furacão Katrina ¿ a maior parte dos relatos envolve turistas ¿ Lucidalva Winjaarde faz parte do que o cônsul brasileiro em Houston, Carlos Pimentel, chama de ¿povão que ficou para trás¿. Carioca de Bonsucesso, ela vive há vinte anos em Nova Orleans. Viúva de um eletricista holandês, que morreu de câncer há três anos, Lucidalva mora numa espécie de conjunto habitacional, ao lado da filha e dos dois netos.

¿ Não temos luxo, mas conseguimos sobreviver após a morte do meu marido ¿ conta ela, por telefone, falando de

Dallas ¿ Eu trabalho num supermercado. Minha filha trabalha num cassino.

Lucy, como diz ser conhecida nos EUA, deixou tudo para trás por causa do Katrina.

¿ Eu tranquei a porta e fui embora com minha família. Passamos dias horríveis no Superdome. Tenho certeza que nos deixaram para morrer naquele inferno.

Após cinco dias no ginásio, ela consegui ser transportada para Dallas.

¿ Hoje vi televisão pela primeira vez. O bairro onde eu morava está destruído. Acho que perdi tudo. Mas ao menos tenho minha família ao meu lado. Por isso, não sei o que vou fazer da minha vida. Estou muito confusa. Mas não devo voltar ao Brasil. Sei sobreviver aqui, mas não sei se ainda sei sobreviver no Brasil.

* Do Globonline

COLABOROU: Carlos Albuquerque

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