Título: AINDA A CRISE
Autor: Fernando Henrique Cardoso
Fonte: O Globo, 04/09/2005, O País, p. 15

O que dizer agora diante de CPIs e da paralisia política e administrativa

Há alguns meses, em um seminário interno do Instituto Sérgio Motta, disse que o rei estava nu. Referia-me ao governo, não ao presidente. A reação foi imediata: que engano! Seria inveja dos dados econômicos tão brilhantes ou da popularidade do presidente, sussurravam os críticos, deliciando-se com o que se chamou de uma "pisada no tomateiro". Nem uma coisa, nem outra: apenas me referia ao fracasso da gestão governamental, que eu atribuía à substituição indiscriminada de funcionários competentes (fossem cargos de confiança ou não) por militantes do partido governante ou de partidos aliados, cuja lealdade política raramente correspondia a desempenho competente.

Avaliação ingênua. Havia mais do que clientelismo e amor ao partido hegemônico. Havia distorções comportamentais muito maiores, de caráter "mafioso" em alguns casos. Eu não imaginava que estivessem ocorrendo atos de corrupção na proporção hoje sabida .

Meses depois daquela afirmação, em outra reunião interna, dessa vez em encontro do PSDB paulista, disse que o governo estava como peru nas antevésperas de Natal, preso por um círculo de giz, tonto, incapaz de sair do córner. Outra saraivada de comentários pouco airosos sobre o que eu dissera. Teria sido grosseiro, chulo, ou coisa que o valha, pois perus na antevéspera de Natal são embebedados para tornar a carne mais palatável. De novo, eu falava do governo e a leitura foi como se tivesse feito uma referência ao presidente.

E agora, que dizer? Três meses de crises políticas, CPIs dia e noite, estarrecimento geral e paralisia política e administrativa. A eleição do deputado Severino para a presidência da Câmara já foi conseqüência da perda de controle do governo sobre sua maioria. Esta perda era perceptível: há quantos meses não há no Congresso qualquer agenda, no sentido forte da palavra? Em vez disso, só discussão sobre reeleição das Mesas, acordos para dar passos atrás nas leis de desempenho eleitoral, como a cláusula de barreira ou a verticalização das alianças. As maiorias "compradas" não seriam para aprovar leis concatenadas em um programa, mas para garantir vitória nas próximas eleições.

Cansamos todos de fazer apelos ao presidente para que ajude o governo a sair da crise. Ele prefere fazer comparações toscas com seus antecessores, assemelhando-se em sua imaginação pouco alimentada pelo conhecimento da História àqueles a quem admira, ou sabe que são admirados, saltando o único antecessor que sofreu impeachment e distanciando-se do antecessor imediato que representa a seus olhos a praga a que ele próprio está agarrado, a herança que deixou na economia.

Desse mato não sairá coelho. Infelizmente, no lugar da grandeza que se pediu que o presidente tivesse, que contasse ao país os novos caminhos que abriria, para cuja consecução apelaria à colaboração de todos (deixando a reeleição para quando tivesse recuperado a respeitabilidade), preferiu brincar de cabra-cega. Colocou venda nos olhos e, como a Ismália enlouquecida do poeta Alphonsus de Guimarães, pôs-se na torre a sonhar, viu uma realização no ar e um futuro no mar de votos que teria. E tome arengas e mais arengas, como se com elas fosse possível substituir a informação e a razão da boa democracia pela manutenção de ilusões nos que pouco sabem, renovando neles a confiança que perdera nos demais segmentos do país.

Este é o quadro. Diante dele, é preciso que o Congresso apresse a marcha. A fase informativa das denúncias e dos interrogatórios televisivos está prestes a cansar as audiências. A ânsia por punição aumenta. Os riscos de exageros, por temor da omissão ou dos acordões, também estão presentes. E o desânimo da população, se decisões mais rápidas e justas para punir os desvios de conduta não ocorrerem, pode ser muito negativo para a democracia.

Mas não é apenas ao Congresso que corresponde estar à altura do momento. Os partidos e suas lideranças tampouco podem se perder em quizilas pré-eleitorais, quando toda gente espera por um rumo e por crença. Embora seja desgastado o que vou dizer, é hora de discutir programas, caminhos para o Brasil. Não se trata de saber, por enquanto, quem vai personificá-los. Trata-se de juntar pessoas e grupos e refazer a teia de alianças com a sociedade civil: com os sindicatos, as igrejas, as ONGs, a intelectualidade, os empresários, a mídia. Um "pacto" ¿ outra palavra a ser renovada ¿ não apenas entre líderes e partidos, mas com os vários setores da sociedade, a partir de valores e de proposições concretas. A construção de um pólo de poder, ou de vários pólos em competição, não se faz do dia para noite. A hora de começar é agora.

Não desejo excluir o PT da ambição de manter o pólo que tão penosamente construiu. Mas para ser competitivo, ele terá de renovar-se completamente. O comportamento de seu líder máximo não dá sinais disso, continua mirando no retrovisor. No partido, então, nem se fale: não há condições sequer para expulsar quem já foi expulso da vida política pela opinião pública.

Com isso não quero dizer que só o PSDB será capaz de propor uma visão e um percurso viável. Acho mesmo que, neste momento, sem um diálogo franco com o país nenhum partido reúne condições para aglutinar uma maioria. Isso, sem falar do que sempre existe latente: a descrença pode dar lugar a nova ilusão, dessa vez mais abertamente populista.

A reconstrução da crença não será fácil. É hora de os intelectuais falarem com franqueza. De dizerem como se pode transformar em prática suas crenças. De não se envergonharem em defender os valores democráticos. De deixarem de se esconder na crença abstrata em um socialismo cuja forma nunca apresentam. Que digam claramente no que consistiria e como compatibilizá-lo com a democracia. É hora para definir como será possível acelerar o crescimento econômico, manter a estabilidade e assegurar melhores condições de vida ao povo. Sem muitas ilusões estatizantes nem sonhos de fundamentalismos de mercado, que a poucos satisfaz.

Por fim, é o momento para dizer alto e bom som que roubo e corrupção não são "de esquerda" ou "de direita". São desvios de conduta que não podem ser justificados em nome de causa alguma e tampouco derivam de sistemas eleitorais imperfeitos ou de estruturas sociais iníquas.