Título: O GLAMOUR DE PARIS ENTRE RATOS E BARATAS
Autor: Deborah Berlinck
Fonte: O Globo, 04/09/2005, O Mundo, p. 40

Enorme déficit habitacional leva imigrantes pobres a se amontoarem em prédios decadentes com risco de incêndio

PARIS. Número 3 da Passagem de Brie, no Distrito 19, em plena capital francesa. No prédio caindo aos pedaços, Moussa Karamoko, 24 anos, imigrante da Costa do Marfim, começa a abrir as gavetas do cubículo onde mora com oito pessoas, entre elas, quatro crianças, e pergunta:

¿ Você quer ver baratas ou ratos?

Moussa é uma das milhares de pessoas em Paris na fila de espera por um HLM (sigla em francês para ¿habitação de aluguel moderado¿).

A Paris deste moço magro, que vive de biscates, não é nada glamourosa. Ele mora num prédio condenado da prefeitura, quase todo tomado por seus parentes da Costa do Marfim. Há dias não dorme direito, temendo morrer queimado, junto com o irmão, a mulher do irmão, um primo, um bebê e outras três crianças. Eles dividem 25 metros quadrados.

Moussa tem motivo para estar com medo. Nos últimos quatro meses, três prédios exatamente nas mesmas condições ¿ com rachaduras e fios elétricos descobertos ¿ pegaram fogo, matando 47 africanos, mais da metade crianças.

Incêndio é só um dos riscos. No prédio de Moussa, há seis meses uma criança caiu do segundo para o primeiro andar porque faltava barra de ferro na escada. A prefeitura foi lá e consertou. Mas só isso.

A França vive uma crise de habitação até então sem precedentes. Os ricos começaram a ocupar os bairros do centro da cidade e junto com eles vieram os especuladores. Com os preços dos imóveis disparando, os pobres e até parte da classe média foram sendo empurrados para a periferia. Hoje, em alguns lugares do centro de Paris, o metro quadrado chega a 8 mil euros (cerca de R$23,4 mil) e o aluguel de uma quitinete não sai por menos de mil euros (R$3,3 mil).

Há 300 mil pessoas na fila para apartamento barato. Mas não há lugar. As construções dos últimos 20 anos não foram suficientes, obrigando as pessoas a se amontoarem no que resta: residências insalubres e inseguras. A prefeitura recenseou 975 prédios perigosos na cidade, dos quais 423 casos ¿de insalubridade irremediável¿. No prédio da frente do apartamento de Moussa, uma senhora abre a porta de seu apartamento impecável para uma fotógrafa registrar, de cima, a miséria dos vizinhos. São duas Paris convivendo na mesma rua.

¿ Isso aqui é pior do que favela do Rio ¿ comenta Jean-Pierre Montanay, que prepara uma reportagem para a TF1, principal rede de televisão francesa.

A série macabra de incêndios em Paris e a quantidade de gente morta, sobretudo crianças, está obrigando governo e prefeitura a encarar um problema que ficava convenientemente escondido por trás da imagem glamourosa da cidade: as condições precárias em que vivem muitos pobres da cidade. Em 2000, o então primeiro-ministro socialista Lionel Jospin criou uma lei que fixa em 20% o número mínimo de habitações populares que cada municipalidade deve ter. Mas algumas prefeituras de bairros ricos, para não desagradar aos eleitores, preferem pagar a multa para não terem que cumprir a lei.

¿ Estou aqui desde 1992. Vim da Costa do Marfim porque eu achava que a França era um paraíso. Mas alguns nos avisavam: não venha. Mas eu só via belas imagens na televisão. E vim ¿ conta Moussa.