Título: TEMA EM DEBATE: COTAS RACIAIS
Autor: Raquel Cesar
Fonte: O Globo, 01/11/2004, O País, p. 7

O papel do Estado

Odebate sobre cotas raciais na Universidade Federal do Rio de Janeiro tem enfrentado essencialmente a questão de saber se é justo o Estado regular os espíritos mais competitivos do mercado, ou se deve deles abstrair-se, ainda que o desenvolvimento de suas personalidades comprometa a autonomia da liberdade de escolha.

Talvez se tivéssemos falando de indivíduos que sempre possuíram a mesma liberdade de escolha, associada às mesmas opções para essa escolha, a preferência fosse pela não interferência do Estado no processo de busca que eles assumem por bens, direitos e recursos públicos. Isso certamente justificaria qualquer desigualdade advinda dos limites encontrados nessa busca, como um resultado justo, natural.

No entanto, quando se trata de indivíduos para quem as alternativas de escolhas ou não são razoáveis, ou sequer não existem, então, o critério de justiça ou de neutralidade mais óbvio do Estado estaria na sua atuação em reaver esse desequilíbrio social. É justamente isso o que prevê o art. 206, I, da Constituição, ao estabelecer o princípio da igualdade para o acesso e permanência na escola.

Mas a questão não se restringe aí. O problema se desdobra quando o Estado se confronta com o monopólio estabelecido pelas elites qualificadas que assumiram o controle de coisas, pessoas, e do bem ¿educação superior¿ em nome da meritocracia de onde emana poder e privilégios.

Para mantê-los, chegam a invocar o princípio constitucional da autonomia universitária, como se ele se confundisse com soberania; e declamam o art. 208, V, que trata da garantia do ¿acesso aos níveis mais elevados do ensino, segundo a capacidade de cada um¿, como se as políticas de ação afirmativa na educação superior inviabilizassem a importância do talento natural, da educação familiar ou de habilidades construídas para o êxito acadêmico. Mais, como se elas se descuidassem do mérito de seus beneficiados.

O objetivo do Estado nessa matéria não é propriamente o de quebrar o monopólio das pessoas mais qualificadas, mas, sim, o de estabelecer limites às prerrogativas de poder que estas pessoas passam a exigir no mercado, reproduzindo desigualdades que se transmitem nas relações de raça e poder na sociedade.

Por isso, na busca pelo bem educação superior não deve prevalecer a importância social do dinheiro que tão facilmente ¿promove¿ as habilidades comuns ao status de talento natural, nem se aceitar que as desigualdades resultantes sejam consideradas algo imutável, como se os prejuízos trazidos aos espíritos menos competitivos ou mais excluídos fugissem ao controle.

Esse é o sentido que a Constituição atribui à educação superior, ao afirmar que a educação não tem uma finalidade apenas mercadológica, mas de promover o ¿pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho¿. Isto é, o de resgatar os cidadãos de suas classes, conceitos e preconceitos perniciosos ao desenvolvimento da autonomia, e dar-lhes uma nova oportunidade de cidadania.

Conseqüentemente, também é a própria Constituição quem define o posicionamento do Estado em relação a essa questão. Estabelece como objetivo fundamental do Estado a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, o que significa que o papel fundamental do Estado é justamente o de impedir que contingências sociais e legais confinem cidadãos a viverem em classes fechadas, quer sejam elas privilegiadas ou excluídas.

Se ainda assim os espíritos mais livres do mercado não se convencerem, ninguém melhor que John Rawls, o grande filósofo da Justiça, para esclarecer que, de fato, ¿a distribuição natural não é justa nem injusta; nem é injusto que as pessoas nasçam em alguma posição particular na sociedade. Esses são simplesmente fatos naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com esse fato¿. E, neste caso, o modo do Estado brasileiro não pode ser outro senão o da regulamentação.