Título: Cidade proibida
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 05/09/2005, O Mundo, p. 18

Temendo epidemias, governo americano inicia evacuação total de Nova Orleans

Diante da incapacidade de levar alimentos e água aos moradores que ainda permanecem em Nova Orleans, seis dias depois da passagem do furacão Katrina pelo Sul dos EUA, o governo americano decidiu iniciar ontem a evacuação total da cidade da Louisiana.

Equipes de resgate visitaram casas e apartamentos para intimar os moradores a sair. Trata-se de uma medida por enquanto voluntária. Isso, no entanto, poderá mudar nos próximos dias:

¿ Vai depender muito da situação de saúde pública. Grande parte da cidade continua inundada, e a água está contaminada por detritos poluentes e cadáveres em decomposição. Se não conseguirmos fazer uma limpeza rapidamente, será preciso obrigar todos a abandonar Nova Orleans para evitar epidemias ¿ disse ao GLOBO W. J. Riley, porta-voz da polícia local.

Barreiras com policiais e soldados armados de rifles automáticos foram montadas nas estradas que dão acesso à cidade, impedindo a entrada de quem não seja das equipes de resgate e socorro, ou da imprensa.

Ao mesmo tempo, as autoridades tentavam convencer a sair da cidade as 40 mil pessoas ¿ de uma população total de cerca de 500 mil ¿ que ainda insistiam em permanecer em suas casas ou no que sobrou delas. O caos era tão evidente quanto a impotência das autoridades diante do desafio. Elas previram que Nova Orleans só voltará a ter água potável e eletricidade daqui a aproximadamente três meses.

No embarque, nenhuma mala

Algumas famílias, como a do mecânico de automóveis Steve Brown, viram-se forçadas a ceder e embarcar num ônibus que as levaria ao Texas.

¿ Não estava dando mais para agüentar. Estávamos correndo o risco de morrer de fome. O pouco que conseguimos da Cruz Vermelha não dava nem para alimentar as crianças ¿ disse Brown, com um de seus três filhos nos braços, momentos antes de seguir com destino a um abrigo em Houston, por tempo indeterminado.

Os embarques tinham uma carga emotiva fora do comum. Ninguém carregava malas. Restavam aos sobreviventes pequenas sacolas ou sacos plásticos de lixo onde enfiaram as poucas peças de roupa que conseguiram salvar da inundação. Alguns carregavam também um envelope contendo a memória fotográfica de sua família nesta cidade que, ao que tudo indica, jamais voltará a ser a mesma.

Quem tinha cães, gatos, ou outros animais de estimação, partia com uma dor adicional: os policiais tinham ordens expressas de confiscar os bichos das mãos de seus donos no momento do embarque, pois não há permissão para mantê-los nos abrigos públicos para onde as vítimas do Katrina estão sendo levadas.

Aspecto de uma cidade em guerra

Segundo John Kennedy, um dos policiais encarregados da missão de impedir o embarque de bichos de estimação, algumas pessoas têm se negado a deixar a cidade sem seu animal:

¿ Uma mulher me disse: ¿Perdi minha casa, meu carro, meu trabalho, mas não vou deixar meu cachorro morrer de fome aqui¿¿ contou ele, revelando que o único argumento de que dispõe é prometer que os animais serão levados para adoção em outra cidade.

Paul e Linda Robinson também resolveram permanecer em Nova Orleans, preferindo sobreviver à custa de solidariedade alheia do que abrir mão de seus dois cães. Além disso, o casal adotou temporariamente quatro cachorros de amigos e vizinhos, cujas casas foram destruídas.

¿ Daqui só saímos à força, e mesmo assim os cães vão conosco ¿ garantiu Linda, enquanto caminhava numa rua do centro junto ao marido e aos seis animais.

O ruidoso e constante vôo de helicópteros militares a baixa altitude e a freqüente chegada de tropas do Exército davam a Nova Orleans ontem o aspecto de uma cidade em guerra. Esse reforço de segurança, ainda que tardio, serviu para reduzir ao mínimo os saques. Mas foi incapaz de conter dois novos castigos a quem preferiu permanecer na cidade: a ganância e a extorsão.

Alguns dos poucos comerciantes em atividade estavam aproveitando a tragédia para cobrar, impunemente, preços absurdos por suas mercadorias. Os mais mesquinhos eram os donos de postos de gasolina: eles passaram a exigir o dobro do valor habitual do combustível e só aceitavam pagamento em dinheiro vivo.

Perguntado a respeito da prática criminosa, Riley, o porta-voz da polícia, deu de ombros:

¿ Não há como tomar providências imediatas a esse respeito em meio a uma tragédia como a que estamos vivendo. A carga é enorme. Ela é tanta que nos últimos dias dois policiais se suicidaram ¿ disse ele, acrescentando que os dois colegas haviam chegado a esse extremo devido a sua impotência para socorrer suas próprias famílias, dizimadas pelo Katrina.