Título: O FÃ DE GIBIS QUE TIROU O HUMOR DO PT
Autor: Maria Lima
Fonte: O Globo, 01/11/2004, O país, p. 10

Depois da derrota em 2002, Serra fez campanha com cara de vitorioso

SÃO PAULO. Sai a quatrocentona e entra o filho de feirante da Mooca, simpática vila de operários encravada no centro velho de São Paulo. Novo prefeito dos 10,5 milhões de paulistanos, o tucano José Serra relutou até o último minuto em se lançar na missão de bater de frente com o PT da prefeita Marta Suplicy. Uma derrota seguida à de 2002, quando ganhou na capital mas perdeu no resto do país para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seria praticamente seu enterro político. Ao fim de uma campanha em que tudo deu certo, sai revigorado e pronto para comandar, do bunker paulistano, a guerra nacional com o PT em 2006.

Na campanha, em que fez uma dobradinha bem sucedida com o governador Geraldo Alckmin (PSDB), Serra venceu a fama de mal-humorado e sem carisma. Revelou-se surpreendentemente feliz ¿ o símbolo de sua campanha era o bonequinho Smile ¿ e desenvolto no corpo-a-corpo com o eleitorado de favelas ou dos chamados Jardins. Serra nunca sorriu tanto. Até de lindo foi chamado.

A biografia oficial dos quase 50 anos de vida pública do novo prefeito todos conhecem de cor. Mas um outro Serra surge nas recordações das pessoas que conviveram com ele nos momentos mais importantes de sua vida, desde a infância. As tias Tereza, Carmelita e Rosa, que ainda moram na Mooca em casas próximas à da irmã Serafina, a mãe de Serra, contam que cada uma cuidou um pouco do sobrinho, filho único, quando garoto. Tinha uma coleção fantástica de gibis e um jogo de botões de plástico retirados de um casaco do pai. Mas se trancava no quarto, punha uma placa na porta de "não perturbe" e só queria saber de estudar.

¿ Meu sobrinho era um rapazinho lindo e cabeludo. Perdeu os cabelos no Chile (onde esteve exilado na década de 70) de tristeza por ter de se afastar da família e dos amigos daqui. Nunca foi namorador. Sua primeira grande paixão foi a Mônica ¿ conta tia Carmelita.

O primo Franco, de 51 anos, lembra quando, menino, ia passar férias na casa dos tios, no Ipiranga, e Serra ficava trancado no quarto estudando.

¿ Ele tinha uma coleção completa de todos os times, de jogo de botão, e uma coleção de gibis. Aquilo fazia a nossa alegria. Mas o primo só queria saber de ler. Não era de farra, de mulherada. Sempre o achei uma pessoa iluminada, que hoje tem chance de fazer muita coisa pelo Brasil ¿ diz o filho da tia Rosa.

Com problemas de locomoção, dona Serafina Chirico, aos 86 anos, emociona-se quando vê o filho na televisão. Viúva de Francisco Serra, mora com Luzia e Neide, empregadas há 19 anos que já se consideram da família. Na eleição para presidente, ela foi votar de cadeira de rodas. Mas, desta vez, acompanhou tudo de casa, pela TV.

¿ Ela fica brava quando a Marta aparece falando mal do Serra ¿ conta Luzia.

Na UNE, grupo de jograis

Visto como um menino de ouro pela família, foi um desgosto quando ele abraçou o movimento estudantil e se afastou.

Na escola de engenharia politécnica, Serra entrou aos 18 anos e se formou em 1964, ano do golpe militar. Quando foi eleito presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), passou a viver na sede da entidade com outros líderes, como Benedito Nicotero, o Tota, Arnaldo Jabor e Vianinha. Logo chamou a atenção ao participar de um grupo de jograis, dirigido por Fauzi Arap. Fazia shows interpretando gêmeos siameses que gostavam da mesma mulher, sendo um bandido e outro bonzinho. O bandido é que se dava bem, lembra o hoje arquiteto Tota, que foi presidente da União Estadual de Estudantes (UEE) logo depois de Serra:

¿ Existem muitas lendas sobre Serra. Uma diz que, quando era jovenzinho, seu interesse pela política começou quando coloria, em um atlas, os países da América do Sul que queria anexar ao Brasil.

Antes do longo exílio no Chile e na França, Serra teve ainda uma passagem pelo teatro, quando protagonizou a peça "Catavento", de José Celso Martinez, dirigido por Arap. Nesta época é que teria conhecido a atriz Regina Duarte, que na campanha presidencial, em 2002, deu um depoimento a seu favor, falando do medo de votar em Lula, que causou polêmica.

Antes do exílio, no Chile, onde se aproximou do casal Fernando Henrique e Ruth Cardoso, Serra só teve uma namorada no Brasil, Yara Aun, da Juventude Universitária Católica (Ajuc), hoje professora da PUC-SP. Segundo testemunho de companheiros da época, o então presidente da UNE era uma celebridade, que como bom político sempre gostava de jogar charme para as mulheres, mas ser conquistador nunca foi seu forte.

¿ Yara era encantadora e Serra não resistiu. Mas quando foi para a Bolívia e depois para o Chile, o namoro ficou impossível. Lá, ele conheceu Mônica Allende, outra pessoa maravilhosa, com quem se casou. Serra sempre foi muito paciente. Ele sabe esperar e agora está chegando lá ¿ diz Maria Lúcia, mulher de Tota e da turma de Serra no movimento estudantil.

Esconderijo na casa de Beatriz

Em 1965, quando Serra teve uma rápida passagem pelo Brasil, ainda na clandestinidade, ficou escondido cerca de um mês e meio na casa da atriz Beatriz Segall. Tentou reorganizar a Ação Popular, mas como o movimento rumava para a luta armada, resolveu voltar ao Chile.

¿ A gente não sabia de nada. Recebia em casa e pronto. Não sabia de onde vinha nem para onde ia. Ele não gostava de perder no futebol, com meus filhos. Sua vida está aí para provar que ele está longe de ser um homem de derrotas ¿ diz hoje Beatriz Segall.