Título: A busca pelos mortos
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 06/09/2005, O Mundo, p. 25

Polícia começa a recolher corpos, que podem chegar a dez mil segundo prefeito de Nova Orleans

Herbert Harris tinha os olhos esbugalhados e tremia muito ao desembarcar do helicóptero militar que, momentos antes, o resgatara do telhado de sua casa, ontem de manhã, num bairro pobre de Nova Orleans. A residência se transformara, literalmente, numa ilha. E ali ele permanecera uma semana, esquecido pelas autoridades.

Harris estava sem comer há dois dias. Mas assim que pisou em terra firme, explodindo num choro convulsivo, ele pediu um cigarro ao sargento Chip Reynolds, que o ajudara no desembarque. Harris recebeu dois cigarros, acendeu ambos e depois de uma profunda tragada em cada um, abaixou a cabeça para esconder as lágrimas.

- Ele está em estado de choque e não é para menos. Estava sozinho há dias, sem ter como pedir socorro, até que o pessoal de um helicóptero o viu - disse Reynolds.

Grupos de soldados do Exército vasculharam vários pontos do centro de Nova Orleans ontem, começando pelo Bairro Francês, famoso por seus clubes de jazz e blues. Eles iam de porta em porta visitando residências e lojas em busca de sobreviventes que precisassem de cuidados imediatos. A segunda varredura era feita por equipes do instituto médico legal, que cuidava de recolher cadáveres.

As mortes contabilizadas oficialmente ainda não chegavam a cem ontem, embora o prefeito da cidade, Ray Nagin, tivesse dito à TV que a expectativa era de que o número chegasse a dez mil. William J. Riley, porta-voz da polícia local, comentou que - "talvez tocado por uma compreensível emoção" - o prefeito poderia ter exagerado a cifra. Mas, em seguida, disse que não se poderia descartar a hipótese:

- É que só hoje estamos começando uma busca minuciosa por mortos, pois até aqui a nossa preocupação era a de acudir os sobreviventes - disse ele.

Só restam dez mil pessoas na cidade

Riley informou que ontem restavam apenas dez mil habitantes para serem retirados da cidade. A evacuação, que até então era voluntária, passou a ser obrigatória. Os encarregados da evacuação evitavam o uso da força física para retirar quem insistia em permanecer em Nova Orleans. A tática adotada, segundo o próprio Riley, era mais discreta, ainda que penosa:

- Para convencer as pessoas a deixarem as suas casas estamos ameaçando deixar de fornecer à elas garrafas de água. Vai chegar um momento em que perceberão que, de fato, não resta outra alternativa a não ser obedecer as nossas ordens - disse ele.

Depois de receberem queixas de que vários postos de gasolina estavam vendendo o produto pelo dobro do preço em Nova Orleans, onde moravam 1,4 milhão de pessoas, as autoridades passaram a visitar aqueles fornecedores ameaçando indiciá-los.

Essa medida fez com que eles voltassem a vender gasolina a preços de mercado. No entanto, os donos dos postos passaram a adotar outro estratagema para tirar proveito do temor da população de que o combustível se esgotará em breve, uma vez que as refinarias de petróleo da região estão paralisadas há uma semana: eles racionaram o produto e, ao mesmo tempo, colocaram à disposição apenas o tipo de gasolina mais caro.

A expectativa da Agência Federal de Administração de Emergências era que a situação estará sob controle a partir de hoje em Nova Orleans, com a retirada de toda a sua população. Grandes caravanas de veículos militares continuavam chegando à cidade ontem - muitos deles da divisão de engenharia do Exército, encarregada de executar as obras mais urgentes. Os serviços básicos, no entanto, só deverão voltar a funcionar adequadamente dentro de três meses.