Título: Horrores submersos
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 07/09/2005, O Mundo, p. 28

Quarenta cadáveres achados no centro de convenções. Superdome pode ser demolido

Uma semana após a passagem do furacão Katrina, as águas finalmente começaram a baixar em Nova Orleans. Mas, temeroso do grande número de mortos que devem ser encontrados, o prefeito Ray Nagin alerta para o cenário de horror que pode emergir junto com a cidade.

- Vai ser horrível e vai despertar a nação de novo - disse ele.

A aflição estava estampada no rosto da maioria das centenas de moradores que, ontem, tiveram a chance de voltar - por poucos instantes - às suas casas, apenas para apanhar documentos e utensílios mais valiosos ou queridos. A espera era angustiante na fila de automóveis que se estendia por quilômetros.

No fim da visita, muitos choravam. Mas outros, como Alice Barthelme, uma professora de literatura americana, saíam aliviados. Embora tivesse de deixar para trás muitos tesouros pessoais, ela saiu da casa semidestruída puxando um carrinho de feira com os papéis de que necessitava e acompanhada de um amigo que, ao fugir desesperadamente do furacão Katrina, há oito dias, deixara para trás: o seu cão King.

- Na correria para sair eu não o achava e fui praticamente arrastada por uma equipe de resgate. Mas quando soube que hoje poderíamos voltar para buscar coisas de valor, não pensei duas vezes - disse Alice, que está vivendo com uma irmã em Nashville, no Tennessee.

Doenças surgem entre os socorristas

Enquanto alguns chegavam para a rápida visita, os derradeiros teimosos eram, aos poucos, convencidos a deixá-la. Além de serem informados de que não receberiam mais alimentos e água potável, as autoridades alertavam que com o gradual bombeamento das fétidas águas da inundação - iniciado ontem - começavam a surgir focos mais intensos de infecções.

- Não há mais razão para que fiquem aqui. Não há mais alimentos, nem água, nem emprego. Não há nada. Todos têm que ir embora - disse, irritado, Warren J. Riley, vice-superintendente da polícia.

Segundo a rede CNN, no fim do dia o prefeito autorizou a retirada forçada.

Um buraco de 60 metros num dos diques da cidade foi tapado com chapas de metal e sacos de areia, e uma das máquinas de bombeamento - consertada por engenheiros do Exército - passou a jogar a água de volta ao Lago Pontchartrain. A cidade está mais bem patrulhada por tropas federais para coibir os saques. Casos de hepatite, diarréia e pneumonia começaram a aparecer entre soldados, policiais e civis que participam do socorro. Por isso foi iniciada uma vacinação em massa.

A área do centro de convenções, onde milhares de residentes foram abrigados antes de serem levados para o Texas, estava bloqueada ontem à imprensa. Segundo o jornal "Times Picayune", guardas nacionais encontraram lá dentro cerca de 40 cadáveres num frigorífico, mas em estado de putrefação devido à falta de eletricidade. Alguns corpos teriam marcas de violência, como o de uma menina de 7 anos degolada. Funcionários disseram que o estádio Superdome, usado como centro de refugiados e danificado pelo furacão, poderá ser demolido.

Era evidente, ontem, o clima de tensão e de frustração da polícia, acusada de ter agido com atraso nas operações de salvamento. O seu chefe, Eddie Compass, desabafou dizendo que estava mal equipado para essa operação:

- Não tínhamos alimentos. Não tínhamos água. A munição acabou logo. Estávamos trabalhando com água contaminada na altura do peito. Dezenas de meus colegas estão internados com infecções - disse ele.

A preocupação com os desaparecidos levou cerca de cem mil pessoas a se registrarem num site da Cruz Vermelha para buscar parentes e amigos de que não têm notícias.

Legenda da foto: UM CADÁVER coberto permanece jogado numa rua do Bairro Francês em Nova Orleans, uma semana após a passagem do furacão: autoridades falam em milhares de mortos