Título: SEVERINO É OBRA DO PT
Autor: REINALDO AZEVEDO
Fonte: O Globo, 10/09/2005, Opinião, p. 7

Adivergência é o Chicabom da vida. É sustentável, por exemplo, a tese de que a Revolução Francesa fraturou o antigo regime e é a base da democracia moderna. Não é a minha praia. Daqui de onde diviso o mar sem fim de futuros e passados, nesta São Paulo de horizontes ou íntimos ou hostis, aquele movimento alçou o terror político e a morte à altura de um novo humanismo. A França de 1789 confere à eliminação física do adversário o rosto sorridente de um amanhecer. Leiam a Ilíada. Aquiles, depois de matar Heitor e arrastar o corpo à volta de Tróia, honra-o, devolve-o ao pai, não sem antes combinar com sua vítima um encontro no Hades. Chora a desgraça do inimigo em vez de festejá-la. Não buscava reformar o homem tendo a morte como dama de honra da história.

Goste-se ou não da Revolução Francesa, há, no entanto, alguns consensos: houve mudança no statu quo; o período foi marcado pela violência; os anos pós-revolução foram pendulares em relação a seu ideário ¿ ora recuperavam seus valores, ora os expurgavam; ora exibiam a memória do terror, ora a do termidor. Também a revolução bolchevique, decalque em outro contexto do terror jacobino, suscita divergências. Alguns, como eu, divisam a tragédia e a fonte legitimadora do morticínio em massa; outros vislumbram o portal da consciência histórica.

Por que a digressão? Vimos uma farsa tomar o noticiário com o auxílio de um acadêmico: Renato Lessa, do Iuperj. Ele atribuiu ao PSDB e ao PFL a eleição de Severino Cavalcanti (PP-PE) para a presidência da Câmara. E cobrou desculpas dos dois partidos. É mentira. Não se trata de juízo de valor, interpretação ou gosto. A calculadora de Lessa é igual à minha. A menos que ele a torture para que ela confesse o que ele quer. Severino foi eleito por 300 de seus pares. Os tucanos e os pefelistas, juntos, tinham 113 votos, contra 377 da base aliada. Ainda que tucanos e pefelistas tivessem migrado em massa para o candidato do PP, sobraram 187, oriundos do governismo. Por que as oposições fariam por Lula o que ele não fez por si mesmo?

Mais: José Genoino recheou sua cueca teórica com maquiavelismo vagabundo e cabalou votos para Severino no primeiro turno, arrancando-os de Virgílio Guimarães (PT-MG). Julgava que, no segundo, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) venceria com facilidade. O pernambucano bateu o mineiro por sete votos. Recorreu-se à liberação de verbas de emendas ao Orçamento para derrubar o petista Virgílio. A mentira de que a oposição elegeu Severino, no entanto, prosperou e foi parar nas TVs.

Isso evidencia, caros leitores do GLOBO, a capacidade que o PT, mesmo moribundo, tem de pautar a imprensa. E sua principal arma é contar com a simpatia de grande parte dos jornalistas pela esquerda ¿ na verdade, pelo partido. Alguns encontram nele nem tanto a sua identidade intelectual, mas a afetiva. Contentam-se em tentar mudar o mundo já que não conseguem compreendê-lo. Muitos ainda acreditam que um ente de razão pode ser o agente transformador da história porque traria em si as sementes do futuro que anuncia.

A sorte é que a lógica da concorrência dos veículos impõe que o petismo seja submetido ao mesmo rigor pelo qual passaram outros governos. Mas o partido ainda conserva mobilizadas suas correias de transmissão na mídia. Como, na origem, ele se queria a voz organizada da sociedade civil, seqüestrou para seu projeto de poder até os impulsos de generosidade que tinham outra matriz, especialmente a cristã. Os ¿padres de passeata¿ colaboraram muito ao fazer de Cristo uma espécie de Che Guevara da Galiléia e de Che o Messias de Sierra Maestra. Pouco importa que um multiplicasse o pão e que outro executasse a sangue-frio quem comesse umas migalhas sem autorização ¿ não acreditem em mim nem em Frei Betto, mas em Régis Debray.

Volto ao ponto. Severino já é um cadáver político. Lula e o PT estão no corredor da morte. As mentiras que os conduziram ao poder, no entanto, sobrevivem. Nascem da cota diária de ração que os mal-intencionados fornecem aos tolos.

REINALDO AZEVEDO é jornalista e diretor de redação do site e da revista Primeira Leitura. E-mail: mahfud@uol.com.br