Título: POR MUITO MENOS GETÚLIO SE SUICIDOU
Autor: M. PIO CORREA
Fonte: O Globo, 10/09/2005, Opinião, p. 7

Getúlio Vargas ¿deu serenamente o primeiro passo na eternidade para entrar na História¿ por não poder conviver com a imagem do ¿mar de lama¿ que a campanha implacável de Carlos Lacerda denunciava como cercando o Palácio do Catete.

Esse ¿mar de lama¿ era um límpido regato comparado à lama que, nas palavras da manchete de um matutino carioca, ¿sobe a rampa¿ do Palácio do Planalto. E Gregório Fortunato, o suposto vilão da tragédia de 1954, era mais ingênuo do que uma irmã de caridade, comparado a certos membros do entorno presidencial que temos visto desde então.

Hoje em dia não é um presidente que jaz morto; é um governo, e um poderoso e arrogante partido político que, ainda uma vez em palavras de um jornalista carioca, ¿agonizam em praça pública¿. Diariamente o noticiário dos jornais estampa novos casos de corrupção, de uso de dinheiros públicos para fins fraudulentos, de eleições viciadas pela compra em larga escala de votos e de consciências.

A origem de todos os vícios de nossas instituições políticas acha-se, como bem dizia o saudoso Roberto Marinho, na fundação de Brasília, seguramente o projeto mais insensato desde o da Torre de Babel, e na transferência para lá da capital da República.

Além da inflação e da corrupção ¿ dois monstros ali gerados ¿ devemos a essa mudança a deterioração da qualidade de nossos quadros políticos e de seus costumes.

O estilo das Casas do Congresso, no Rio de Janeiro, era um estilo sóbrio, diríamos hoje austero. A própria palavra ¿mordomia¿ era desconhecida. Os senadores e deputados não recebiam qualquer auxílio-moradia, cada um se alojava como podia. Recordo-me haver acompanhado meu pai em uma visita a um senador de grande prestígio, que residia em uma pensão de família na Rua do Catete. Não existiam verbas para gabinetes ou assessorias. Automóvel oficial, nem pensar. Os senhores congressistas se dirigiam para as respectivas casas viajando democraticamente ¿ como ainda hoje se deslocam em ônibus, táxi ou metrô os membros do Parlamento britânico e os parlamentares franceses, alemães, ou de qualquer grande país.

O Rio de Janeiro conservava então, sob a República, o prestígio de que gozara como sede da Corte no tempo do Império. Os homens mais eminentes dos estados disputavam com interesse uma eleição que os levaria a viver no ambiente mais civilizado e culto do país, com largas janelas para o mundo exterior. Isso levou à constituição de corpos legislativos de alta qualidade. Houve uma época, por exemplo, em que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados contava vinte e dois membros, todos eles formados em direito. O detalhe é que, dos vinte e dois, vinte eram professores de direito. Hoje, creio que seria necessário acender a lanterna de Diógenes para procurar, em Brasília, um elenco de tão alto nível.

¿Quem nunca comeu melado¿, diz o refrão, ¿quando come se lambuza¿. As mordomias de Brasília afrouxaram a fibra moral da classe política representada no Congresso. Assim os rudes soldados do exército de Aníbal, havendo ocupado a cidade de Capua, estância de luxo e de prazer para os romanos, entregaram-se às delícias do lugar, caíram na gandaia com entusiasmo e perderam seu ardor combativo.

Há quem culpe as ¿elites¿ pelo descalabro a que estamos assistindo, pelo festival de bandalheiras de que o noticiário dos jornais diariamente nos revela novos exemplos e novos detalhes. Se culpa têm as ¿elites¿ é a de se haverem afastado, com nojo, da vida política, deixando o campo livre para aventureiros, farsantes e meliantes.

O terremoto que hoje abala os alicerces do poder é bem-vindo, pois ele traz à tona detritos putrefatos que envenenam as nossas instituições, e põe à mão as chagas até aqui ocultas, permitindo que elas sejam cauterizadas com o ferro em brasa da opinião pública indignada.

O presidente Lula não tem por que se suicidar como Getúlio Vargas, ao contrário, devemos agradecer-lhe por haver prestado dois grandes serviços à nação: o primeiro, provar que a democracia no Brasil não é uma ficção, que aqui um homem inculto e inexperiente pode alcançar a mais alta magistratura da República; o segundo, provar que um homem inexperiente e inculto não tem condições para governar o Brasil. Aviso ao eleitorado.

O presidente é um homem de bem; a ele a nossa comiseração pelas agruras e decepções que está sofrendo.

M. PIO CORREA é embaixador aposentado.