Título: Após o caos, a rotina nos abrigos de Houston
Autor: Ana Lucia Borges
Fonte: O Globo, 10/09/2005, O Mundo, p. 33

Confusão de militares, ambulâncias e voluntários no lado de fora contrasta com calma em centros já menos lotados

HOUSTON, Texas. Passado o período de choque, os desabrigados pelo furacão Katrina em Nova Orleans que foram acolhidos em Houston, Texas, agora estão entrando na fase em que começam a se conformar e a se organizar nos abrigos. A cada dia, há menos gente no Centro de Convenções George R. Brown e no complexo de estádios no Reliant Park, onde estão o Astrodome, o Reliant Center e a Reliant Arena. De 11.400 na terça-feira, passaram para 8.623 na sexta.

Com mais espaço, começa a se estabelecer uma rotina, apenas interrompida por incidentes como a confusa distribuição de cartões de débito para os desabrigados pela Cruz Vermelha, na quinta-feira. Em visitas de 15 minutos, o governo está permitindo que a imprensa percorra as instalações do Reliant Park. Ontem pela manhã, O GLOBO esteve no primeiro piso do Astrodome, onde dormem 2.200 pessoas.

O clima por fora é o de um aparato de guerra. Policiais a cavalo, ambulâncias circulando com doentes, legiões de voluntários. Mas, dentro, o ambiente é mais calmo. Com menos gente, as vítimas encontram mais tranqüilidade para dormir. O jornalista alemão Hans Dahne, correspondente da German Press em Washington, esteve no estádio na segunda-feira e ontem.

¿ No começo da semana, as pessoas ainda andavam zonzas entre os colchões. Com espaço de menos de dez centímetros entre uma cama e outra. Agora, estão mais esperançosas ¿ disse.

Clima de cidade pequena e grupos divididos por cores

É o caso da aposentada Alice Storey, de 54 anos, que não tem notícias de seu filho mais velho, de 36, desde que deixou Nova Orleans, há uma semana. Ontem, ela exibia, mais calma, um CD-player que ganhou numa doação, tocando músicas gospel do cantor Smokie Norful.

¿ Conhece? É muito bom. A música é um alento, assim como a Bíblia que ganhei. Eu cantava num coral na igreja em Nova Orleans. Agora, não posso mais. Mas um dia eu volto. E as pessoas têm sido muito boas comigo aqui. Recebi muita comida. Aceita uma banana? ¿ oferecia à repórter e aos nove netos ao seu redor, espalhados em camas arrumadas sobre o chão.

No George Brown Convention Center, a atmosfera é a de uma pequena cidade. Há hospital, farmácias improvisadas, postos de vacinação, capelas e estandes para a retirada de artigos para bebês, como fraldas e comida. As cerca de 1.700 vítimas que estão por lá se dividem em grupos batizados com nomes de cores, como ¿azul¿ e ¿rosa¿, para tomar banho em turnos. Os colchões de ar para dormir estão enfileirados no chão, perto de uma área imensa onde roupas e sapatos amontoam-se para que os desabrigados peguem o que for preciso. Tudo organizado por um exército de 800 voluntarios.

¿ Até agora, o clima é bem familiar. Mas quero ir embora o quanto antes porque minha filha, de 16 anos, tem deficiência mental e fica nervosa em aglomerações. Já vi o preço da diária no hotel de luxo Four Seasons. Estão cobrando US$180 para as vítimas, não sei o que fazer ¿ lamenta Sabrina Heim.

A meta do governo da cidade, agora, é organizar a retirada de vítimas como Sabrina. Segundo o prefeito Bill White, os desabrigados estão sendo encaminhados, com a ajuda governamental e de entidades filantrópicas, às casas de parentes e amigos.

¿ Queremos que encontrem empregos, que possam se sustentar, e que encontrem lares. Os abrigos não estarão aqui para sempre.

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