Título: A falta que faz
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 11/09/2005, Economia, p. 34

A escola que Lula não freqüentou faz falta ao país, os livros que Lula não leu fazem falta ao país. A escola formal não é tudo, mas fertiliza a inteligência; os livros são fundamentais para construir disciplina, discernimento, conhecimento, essenciais na hora de tomar decisão. Uma mente ilustrada tem mais chance na hora da crise.

A falta de escolaridade do candidato do Partido dos Trabalhadores era assunto tabu durante a campanha. Quem o enfrentava nas entrevistas ou nos artigos era bombardeado com a acusação de ser preconceituoso. Havia, inclusive, uma distorção proposital por parte desses críticos. Intelectuais diziam que ele estava sendo discriminado por não ter curso superior, mas não era esse o ponto. O ponto é que Lula, diante de todas as possibilidades de voltar a estudar, não quis fazê-lo. Inexplicavelmente decidiu não estudar. Mesmo tendo parado os estudos na metade do fundamental.

O ensino formal poderia até ser dispensado se o presidente tivesse aquele tipo de curiosidade intelectual dos grandes autodidatas que, através da leitura compulsiva, superam a falta da escola formal. O Brasil é um país complexo, governá-lo é difícil, os dilemas não são triviais, muitos têm errado com maior ou menor escolaridade, mas uma coisa é certa: sem uma mente adestrada, preparada para atravessar relatórios que permitam a decisão informada, sem uma capacidade autônoma de cruzar as informações disponíveis, de concluir, as chances de acertar são muito reduzidas.

O Brasil teve presidentes que estudaram e fizeram governos medíocres; pelas mais variadas razões. A educação não garante nada, mas pode evitar certos erros. Um deles, o de subestimar a dificuldade da tarefa que se tem pela frente.

Lula queria muito ser presidente da República, mas achou que se preparar para isso era fazer discursos e dominar o palanque. Hoje, quando o Brasil precisa que o presidente pare, reflita, entenda e reaja à crise, ele gasta energia num frenético rodeio de palanques fora de hora. O país tem que recolher fragmentos de um discurso sem seqüência lógica, espalhados em vários palanques, para tentar captar o que o presidente da República tem a dizer do maior escândalo político da história recente, que estourou bem ao lado do seu gabinete e no coração de seu partido.

O presidente Lula é inteligente; alguns dos que estiveram em sua cadeira até eram menos inteligentes, mas ele decidiu que, apesar de sonhar em ser o primeiro mandatário, não precisava se preparar para isso, não precisava estudar os relevantes assuntos sobre os quais um dia teria o poder de tomar decisão. Mesmo tendo o talento natural da inteligência, preferiu não investir seu tempo em desenvolvê-lo.

O Instituto da Cidadania, apresentado como um centro de estudos, um think tank, sempre foi, na verdade, um centro de propaganda política. Exemplo da confusão entre marketing e estudo de políticas públicas foi o Fome Zero. Quando saiu de lá em forma de livreto, era um projeto que não incorporava o estado das artes das políticas sociais. Diante das críticas, seus formuladores reagiram como se fosse uma disputa eleitoral. Hoje o grande programa social do governo é um aperfeiçoamento do que já existia: o Bolsa Família, herdeiro do Bolsa Escola. Para a educação, não havia uma política definida, tanto que o país está no terceiro ministro em dois anos e meio e, entre o primeiro e o segundo, os objetivos mudaram. Aquele escritório com tantas notoriedades em suas mesas de trabalho era apenas uma peça do marketing político de Duda Mendonça para dar a impressão de que o candidato seria apoiado por um conselho de sábios.

Lula, ao longo dos seus discursos de presidente, passou várias vezes a mensagem de que estudar não é o fundamental. Isso num país que tem três milhões de pessoas fazendo o antigo supletivo, com enorme esforço pessoal, porque compreenderam que é preciso estudar sempre. Os discursos de Lula presidente têm uma coleção de sinais no sentido contrário. Em inúmeros momentos, que nem é preciso repetir, os leitores bem se lembram, fez sempre o elogio da pouca escola. O brasileiro não pode ser humilhado por ter pouca escola, mas, sim, incentivado a buscar cada vez mais escolaridade. Presidentes formam opinião, por isso, quando falam, não podem pensar nos seus próprios complexos, mas nos desafios que o país enfrenta.

Perguntei a Lula durante a campanha por que ele não voltou a estudar quando pôde. Ele respondeu que viajou muito pelo Brasil e conheceu a realidade do país. Viajar num país continental, surpreendente, de contrastes, é sempre importante, porém essa forma visual e impressionista de captar a realidade não pode ser a única. Lula desprezou inúmeras oportunidades de voltar a estudar. Conformou-se com o quinto ano. Escola não garante nada, mas uma pessoa, inteligente como Lula, se tivesse treinado sua mente de forma mais disciplinada e determinada, teria desenvolvido habilidades decisivas neste momento. Um líder, com carisma, como Lula, se pudesse contar uma história de conquista de escolaridade maior por esforço pessoal a despeito das dificuldades, ajudaria o Brasil a apressar o passo. Um líder descuidado que faz pouco da educação formal, num país que tem menos escolaridade que os vizinhos mais pobres, arrisca produzir um atraso. E nós não podemos mais nos atrasar.