Título: SE TRABALHO DOMÉSTICO FOSSE PAGO, VALERIA 225 BI
Autor: Cássia Almeida
Fonte: O Globo, 11/09/2005, Economia, p. 35

Estudo mostra que custo de lavar, passar e cuidar de filhos equivale a 12,76% do PIB, mais do que agricultura

Lavar, passar, cozinhar, cuidar dos filhos e administrar a casa. Se essas tarefas domésticas fossem pagas, seria necessária uma montanha de dinheiro do tamanho de R$225,4 bilhões em 2004, uma fatia de 12,76% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de todas as riquezas produzidas no país). Essa parcela é superior a tudo o que é produzido em um ano pela agricultura brasileira, que responde por 10% do PIB. É como se acrescentasse mais um Rio de Janeiro, o segundo mais rico estado brasileiro, à economia nacional.

Mas o trabalho doméstico permanece invisível no cálculo das Contas Nacionais brasileiras. Para tentar mostrar o quanto vale esse serviço, Hildete Pereira de Melo, Claudio Considera e Alberto Di Sabbato, economistas da Universidade Federal Fluminense (UFF), buscaram dados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e nas próprias Contas Nacionais brasileiras para mensurar a grandeza desse trabalho. Chegaram a um valor que surpreendeu até os pesquisadores.

- Esperava algo em torno de 5% do PIB. Esse valor foi bem maior que o esperado - disse Claudio Considera, que enviou o trabalho para ser apresentado no congresso da Associação Internacional para Pesquisa de Renda e Riqueza, que se debruçará sobre as revisões dos cálculos do PIB, no ano que vem.

As mulheres gastam 26,57 horas por semana com a casa

Segundo Hildete, há metodologia para imputar valor de aluguel a imóveis usados pelos proprietários e que não geram renda, à educação e à saúde oferecidas pelo estado e sem valor de mercado.

- Por que, então, não há valor para o trabalho doméstico? Só pode ser discriminação contra as mulheres - reclama Hildete, estudiosa da questão de gênero.

Essa discriminação é flagrante quando se olha a divisão do trabalho. Eram 97,7 milhões de pessoas que exerciam alguma tarefa em casa em 2003. Desse total, 68% eram mulheres. Parcela menor que em 2001, quando as mulheres representavam 70%:

- Sejam bem-vindos os homens. A divisão das tarefas domésticas está se tornando menos desigual.

Mas o espaço conquistado pelas mulheres nesses três anos fica menos alentador quando se observa as horas trabalhadas por cada sexo. Enquanto as mulheres dedicaram 26 horas e 57 minutos a lavar louça, cozinhar e cuidar dos filho em 2003, os homens reservaram apenas 11 horas, ou seja, 58% menos que o sexo oposto.

Houve até uma redução no tempo gasto com os afazeres domésticos pelas mulheres. Em 2001, elas gastavam 29 horas. Mas, em contrapartida, não aconteceu o aumento de horas por parte dos homens, o que poderia indicar uma divisão mais igualitária do trabalho doméstico:

- São indícios de que a mulher avança no mercado de trabalho, mas precisa das empregadas para fazer o seu trabalho. Ocupação que paga um salário muito baixo no Brasil - diz Hildete.

Considera vê também o aumento das facilidades na vida doméstica, como a comida congelada, como outro redutor desse tempo destinado ao trabalho caseiro:

- Quem vende produtos para a empresa que faz os congelados conta no PIB, quem vende a comida também. Por que não entra nas contas nacionais quando a comida é feita em casa? - pergunta-se o economista que já dirigiu o Departamento de Contas Nacionais do IBGE, responsável pela contabilidade do PIB.

A cenógrafa Ana Paula Brasil de Matos Guedes não percebia o quanto gastava do seu tempo com o trabalho caseiro. Sem empregada, ela acorda às 6h para fazer o café da filha, Maria, de 12 anos. Logo depois, deixa a menina na escola, vai ao banco, ao supermercado e faz o almoço, pelo menos duas vezes por semana. Trabalha como autônoma em casa e faz faculdade de Artes Cênicas.

- Reservo a noite para fazer o jantar e arrumar a casa. Estico bem as roupas para não precisar passar. Acreditava que gastava duas horas com isso. Mas listando cada tarefa, chego a perder quatro horas por dia - surpreende-se Ana.

O percentual de 12,76% do PIB não chegou a espantar a socióloga Elisabete Dória Bilac, do Núcleo de Estudos Populacionais da Unicamp. Na opinião da pesquisadora, o trabalho em casa traz economia para família, mas é invisível aos olhos econômicos:

- Quando a mulher lava a roupa em casa, deixa de usar a lavanderia. Quando cozinha, não usa o restaurante. É um trabalho com valor econômico, sim. E o estudo mostra isso.

Ganho 22% menor para mulheres

Inclusão das tarefas no PIB chegou a ser discutida, mas foi abandonada

O serviço doméstico remunerado, apesar de ser um campo totalmente dominado por mulheres, paga mais aos homens. Na pesquisa feita pelos economistas da UFF, o ganho do trabalhador doméstico é 21% superior ao da empregada. Dos seis milhões de ocupados nessa função, 93% são do sexo feminino. Mas a atividade caseira tem um viés que aumenta o salário masculino, diz Hildete de Melo:

- Normalmente, o homem trabalha como motorista ou jardineiro, funções que pagam salários melhores.

Do total de mulheres ocupadas, 20% estão no serviço doméstico. A função vem ganhando espaço. A Pesquisa Mensal de Emprego de julho, do IBGE, captou um aumento de 13% no número de pessoas nessa atividade. O setor já emprega 1,691 milhão, 8,5% da mão-de-obra, parcela maior que os 7% da construção civil.

A terceirização do serviço doméstico explica isso, na opinião da ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Com a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, delegou-se as tarefas caseiras para as empregadas.

- Por sua vez, as empregadas também contrataram pessoas para ficar com seus filhos. Quem não tem dinheiro acaba deixando os filhos na rua. É uma cadeia perversa de delegação de tarefas. Um trabalho altamente informal e precário - diz a ministra.

Falta regulamentar pensão para dona-de-casa

Nilcéa lembra o papel reprodutivo que não pode ser conduzido apenas pelas mulheres. O caminho, na opinião da ministra, é a sociedade assumir também esse papel, com o aumento do número de creches e a flexibilização do horário de trabalho:

- Conseguimos mais verba para a educação infantil de 4 a 6 anos. Mas falta ter mais recursos para a creches.

A emenda constitucional que criou a pensão para donas-de-casa limitou-a a mulheres em famílias com renda de até dois salários-mínimos. Mas falta a regulamentação, para saber de onde sairá o dinheiro: da Previdência ou da Assistência Social.

A ministra destacou o trabalho dos economistas, que pela primeira vez deram um valor para os afazeres domésticos. Mas da realização do cálculo à inclusão no Produto Interno Bruto (PIB) há um abismo, até agora, intransponível.

Segundo Roberto Olinto, coordenador de Contas Nacionais do IBGE, dar valor a esse trabalho é uma tarefa muito complicada. A fórmula usada pelos economistas da UFF combinou a investigação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) sobre o tempo gasto com as tarefas domésticas com o salário pago por este mesmo serviço.

Mas há nuances que precisam ser observadas, segundo Olinto. Ele afirma que se criaria um PIB fantasioso com a inclusão desse trabalho:

- Por exemplo, uma engenheira que ganha R$15 mil. Quando ela faz trabalho doméstico, não pode ser medido pelo ganho de uma empregada normal, sem qualificação. Qual seria o salário-hora, então? E também não existiria desemprego, já que quem não está trabalhando fora teria uma atividade em casa.

Ele conta que se chegou a pensar em imputar um valor, pelo menos, para as que são somente donas-de-casa, mas a revisão foi abandonada:

- É uma questão social, de aumentar o bem-estar da família. Não é econômica, não gera renda, não é disputada no mercado. (Cássia Almeida)

'Sejam bem-vindos os homens. A divisão das tarefas domésticas está se tornando menos desigual'

HILDETE PEREIRA DE MELO

Economista da UFF

Legenda da foto: NILCÉA FREIRE: "Há uma cadeia perversa com a delegação de tarefas"