Título: O ESCUDO DA LEI
Autor: IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
Fonte: O Globo, 12/09/2005, Opinião, p. 7

Em recente palestra para a Revista ¿Lide News¿, o Secretário da Receita Federal declarou que a simplificação do sistema tributário é fundamental para maior justiça fiscal e eliminação da evasão tributária, concluindo o grupo liderado por João Dória, na pesquisa final realizada após sua palestra, que a redução dos gastos do governo é imprescindível.

Nada obstante concordarem os conferencistas do dia e os membros do grupo de líderes empresariais que o sistema é injusto, complicado e necessita ser revisto, o que realmente preocupa é outra manifestação da equipe econômica do governo, que deverá elevar o ¿superávit primário¿ para 4,55%, apesar de o FMI sugerir apenas 4,25%, antecipando novo arrocho fiscal.

Ora, cada vez que se precisa arrecadar mais tributos, os direitos fundamentais do contribuinte acabam sendo tisnados e soluções pouco jurídicas começam a povoar a cabeça dos administradores públicos da área tributária encarregados de executar a espinhosa tarefa.

Tenho defendido que a melhor forma de se fazer uma reforma tributária é reduzir os gastos governamentais, única maneira de a Receita poder trabalhar, rigorosamente, dentro dos parâmetros legais e não em zonas cinzentas e contestáveis do ordenamento jurídico.

Entre as questões que tangenciam ou ingressam decididamente nesta atuação mais criticável da Receita está a pretendida aplicação da norma antielisão, em que o agente fiscal substitui o legislador e impõe o seu palpite sobre a ação legal do constituinte.

Tal norma antielisão ainda depende de regulamentação, conforme determina o parágrafo único do art. 116 do CTN, assim redigido: ¿A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela LC nº 104, de 10.1.2001).¿

A primeira tentativa de regulamentar esse parágrafo único foi escorraçada pelo Congresso, ao rejeitar os arts. 13 a 19 da MP 66. Assim continua ele, até hoje, sem regulamentação, e, portanto, sem eficácia.

Ora, aquilo que o governo federal não conseguiu implementar via MP 66/02 pretende fazê-lo através de meros atos administrativos da fiscalização, que começam a desconsiderar as empresas de prestação de serviços, formadas por profissionais liberais ou trabalhadores, que preferem se organizar sob a forma de pessoa jurídica, a serem ¿autônomos¿ ou ¿empregados¿.

O mais estranho ¿ por ter admiração e respeito ao Secretário da Receita Federal, Dr. Jorge Rachid, não posso admitir que haja má-fé nas tentativas permanentes de desconsiderar tais empresas, procurando autuá-las para que paguem Imposto de Renda e Contribuições Previdenciárias como se fossem pessoas físicas ¿ é que a iniciativa vem após o rotundo fracasso da MP 232/04, em que o secretário da Receita Federal e seus auxiliares, em sucessivas declarações, sustentaram que haveria necessidade de aumentar a imposição tributária sobre essas sociedades, porque, de rigor, estavam pagando menos do que pagariam, se seus titulares fossem autônomos ou empregados.

Em outras palavras, quando a MP 232/04 foi editada, não só Sua Excelência considerou que tais empresas eram ¿legais¿, como procurou elevar a sua carga ¿ o que, todavia, como já ocorrera com a absurda MP 66/02, foi rejeitada pelo Congresso.

Agora, de novo, aquilo que o governo federal não conseguiu obter, via Poder Legislativo, pretende então obter manu militari ¿ autorizando que seus agentes considerem ¿ilegais¿ empresas reconhecidamente ¿legais¿, ante o fracasso da tentativa de tributá-las mais pesadamente, via MP 232/04.

Sua Excelência ¿ a quem sempre rendo minhas maiores homenagens e de quem me causa profundo constrangimento divergir ¿ há de se lembrar que o regime jurídico do lucro presumido, idealizado, nos termos atuais, genialmente, pelo secretário que lhe antecedeu, Everardo Maciel, objetivou trazer para a formalidade um contingente enorme de empresas informais, propiciando um sistema tributário menos oneroso e mais justo. E conseguiu, tendo havido aumento da arrecadação, visto que o universo de contribuintes cresceu de tal forma que hoje mais de 90% das empresas brasileiras estão sujeitas ao lucro presumido.

É de acrescentar, ainda, que a opção de prestar serviços sob o regime jurídico de pessoa jurídica ou física está assegurada pelo art. 170, parágrafo único, da CF, ao dizer que: ¿É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei¿, nenhuma lei havendo, no momento, a impedir que assim ajam as pessoas, na sua liberdade de exercer uma atividade econômica.

Parece-me que precedentes desta natureza, sem base legal, à falta de regulamentação do art. 116, parágrafo único, do CTN, são claramente violadores do art. 170, parágrafo único, da CF, em nada beneficiando as relações de equilíbrio e respeito que devem existir entre Fisco e Contribuinte. Pelo contrário, geram tensões e insegurança, as quais podem dificultar a implantação da justiça tributária.

Tem o Fisco o direito de tudo exigir dentro da lei, pertencendo-lhe a espada de imposição fiscal. O contribuinte tem o direito de se defender de tudo aquilo que o Poder Público pretende fora da lei, como ocorre com a norma antielisão, ainda não regulamentada. A defesa da sociedade está, exatamente, na utilização do escudo da lei. Tudo pode o Fisco dentro da lei. Nada fora dela.

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS é advogado.