Título: TRABALHADORES SALVAM EMPRESAS
Autor: Mariza Louven
Fonte: O Globo, 12/09/2005, Economia, p. 14

Empregados enfrentam crises assumindo o controle de indústrias quase falidas

A Ferragens Haga, de Nova Friburgo, mudou sua razão social e passou a se chamar Haga S.A. Indústria e Comércio. De nome e logomarca novos, lembra pouco a firma concordatária que só não fechou porque os empregados assumiram seu controle, em 1993. Como a Haga, diversas empresas foram literalmente salvas pelos trabalhadores nos últimos 15 anos, e muitos outros negócios surgiram como alternativa às sucessivas crises econômicas, norteados pelo conceito da autogestão, totalizando hoje mais de 20 mil empreendimentos e dois milhões de pessoas ocupadas.

Essa é a estimativa da Secretaria Nacional da Economia Solidária (Senaes), do Ministério do Trabalho e Emprego, sobre o tamanho do mercado que tem como principal característica a autogestão. A Senaes se baseou em um levantamento feito até agora em mais de dez mil empreendimentos do país. O secretário da Senaes, Paul Singer, espera concluir até o fim do ano o mapeamento desses negócios formados, administrados e controlados por profissionais urbanos, agricultores, quilombolas, recicladores e até índios, em 27 estados.

Enquanto isso, um estudo feito de janeiro a abril deste ano pelo professor Jose Ricardo Tauile, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e pelo pesquisador Huberlan Rodrigues dão as pistas do perfil e dos problemas existentes no segmento da economia solidária representado pelos empreendimentos industriais que estavam em situação pré-falimentar e foram recuperados pelos empregados.

Fenômeno ao largo de políticas públicas

Foram pesquisadas 30 iniciativas, com o objetivo de subsidiar o debate sobre o tema e a formulação de política pública para o segmento. O trabalho foi encomendado pela Senaes, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pela Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec).

¿ É um fenômeno rico, porque gera trabalho, renda e desenvolvimento. Mas passa ao largo das políticas do Estado, que não tem arcabouço instrumental para receber esses novos atores ¿ afirma Rodrigues.

Tauile e Rodrigues verificaram que a maioria dos empreendimentos surgiu a partir dos anos 90, para fazer frente às crises econômicas, e tomou a forma de cooperativa de produção. Poucos optaram pelas sociedades de capital. Este último caso é o da Haga, cujas atividades foram totalmente paralisadas em 1992, até que o controle acionário foi transferido aos funcionários, no ano seguinte. Organizados em uma associação, os trabalhadores são hoje o acionista controlador da companhia, com 72,4% do capital votante.

¿ A mudança de nome é parte do processo de modernização ¿ afirma o presidente da Haga, José Luiz Abicail, há 28 anos na empresa.

Segundo Tauile, algumas iniciativas surgiram para recuperar empresas em situação pré-falimentar, mas outras foram alternativa para a massa trabalhadora de toda uma região ¿ desempregada por força da migração de empresas de um determinado setor para outros estados. É o caso das 14 cooperativas de calçados da região do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. Outro negócio que virou arrimo econômico de uma região inteira é a Usina Catende, de Pernambuco, cuja propriedade abrange cinco municípios.

Os empregados demitidos da Catende requereram a falência, em 1995, e impediram o fechamento da usina.

¿ Moemos cerca de 440 mil toneladas de cana em 2004 e produzimos 900 mil sacos de açúcar ¿ afirma Arnaldo Liberato, um dos dirigentes da Catende e também vice-presidente da Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão (Anteag).

Entre os problemas mais comuns verificados por Tauile e Rodrigues está a falta de acesso ao crédito ¿ para compra de equipamentos, para participar dos leilões da massa falida, para capital de giro ou para saldar dívidas. Entre as razões do problema estão a inadimplência anterior e a falta de garantias reais ou convencionais.

Até por isso, a maioria dos negócios estudados só tem faturamento de até R$3 milhões por ano. O único que passou dos R$100 milhões foi a metalúrgica Uniforja, de São Paulo, que individualmente conseguiu captar recursos junto ao BNDES. A empresa deve faturar este ano R$150 milhões, 22% mais que no ano passado, informa seu presidente, José Domingos. Segundo ele, o lucro líquido chega a 4% do faturamento. Dos ganhos, cerca de 15% são distribuídos aos empregados e o restante é reinvestido.

¿ O problema é que os bancos não acreditam no trabalhador ¿ afirma Domingos.

Leis brasileiras não apóiam autogestão

Outro exemplo de sucesso é a Cooperativa dos Trabalhadores Metalúrgicos de Canoas (CTMC), do Rio Grande do Sul, que vai disputar este ano o fornecimento de equipamentos e infra-estrutura metálica para os novos terminais a serem construídos no Porto de Sepetiba, no Rio, um negócio de US$130 milhões. O presidente da CTMC, João Henrique Barbosa Silva, informou que a organização vai participar por meio da Rede Nacional de Cooperativas Industriais (Renaci), associação formada também pela gaúcha Geralcoop, pela Copermetal, de Santa Catarina, e pela Coomefer, de Minas Gerais.

A estratégia da CTMC é a mesma que levou a Mondragon Corporación Corporativa a ser o maior conglomerado do País Basco e o sétimo da Espanha, com faturamento, em 2004, de 10,45 bilhões de euros (cerca de R$31 bilhões) e 10,4 bilhões de euros (R$30 bilhões) em intermediação financeira. O grupo reúne 70.800 trabalhadores.

Entretanto, segundo Tauile, falta ao Brasil um marco jurídico capaz de apoiar e fomentar esse tipo de empreendimento:

¿ A Lei das S.A. não atende porque os negócios autogeridos não têm as mesmas características das sociedades de capital. Seria interessante se o modelo fosse inspirado no da Espanha, onde há a figura jurídica das sociedades laborais (de trabalhadores), limitadas ou anônimas. E a lei brasileira sobre cooperativas também é obsoleta, de 1971, ainda fruto do regime militar.

Singer informou que a Senaes vai enviar um projeto à Casa Civil nas próximas semanas, propondo a regulamentação das cooperativas de trabalho. O foco é garantir os direitos trabalhistas aos cooperados.