Título: PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Autor: Antonio Augusto Dushee de Abranches
Fonte: O Globo, 15/09/2005, Opinião, p. 7

No meio da grave crise política que assola o país, um ex-servidor público do município de Ribeirão Preto teve decretada a sua prisão temporária, por 5 dias, pelo juiz de direito da comarca, para facilitar as investigações que o Ministério Público vinha fazendo sobre corrupção nas licitações para coleta de lixo naquela cidade. De surpresa, mesmo sem ser decretada a periculosidade do preso, a polícia cumpriu o mandado, meteu-lhe algemas, vestiu-lhe a roupa cor de laranja dos presidiários e o transportou no fundo de um camburão, sob as lentes da TV.

No curso do interrogatório, o promotor público saiu da sala e divulgou para a imprensa declarações do investigado que envolveram o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, no chamado "valerioduto". Chamado a se pronunciar algum tempo mais tarde, o advogado de Buratti disse que seu cliente não resistiu à humilhação e falou mais do que devia. O exagero dessa prisão se comprovou 2 dias depois, quando foi solto, sem mais nem menos, pelo mesmo juiz. Pergunta-se: os fins justificam os meios?

No Estado democrático de direito, a resposta só pode ser não. A Constituição não outorga a ninguém - nem ao Ministério Público - o poder de investigar sem observância das regras constitucionais. O devido processo legal consiste no respeito aos direitos e às garantias individuais por parte de quem preside o inquérito, como consta no art. 5º: ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante; é assegurado aos presos o respeito à integridade moral; ninguém será processado senão pela autoridade competente; aos acusados é assegurada a ampla defesa com todos os meios a ela inerentes; são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos; ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória; o preso tem o direito de permanecer calado.

A propósito, o Supremo Tribunal Federal disse, em decisão unânime e recente, que o Ministério Público não tem o poder de fazer investigações por conta própria. Por isso, a OAB está impugnando no Judiciário o interrogatório de Buratti, que tem 99% de chances de ser declarado nulo e não servir de prova contra o ministro, mesmo com a "delação premiada", que não pode ser oferecida ao preso no meio do interrogatório. Oferta nessas condições é considerada coação a quem se encontra em posição de inferioridade. Delação só é válida se o delator tiver a iniciativa, depois de ser condenado. Só se reduz uma pena já imposta.

Apesar de os meios jurídicos não reconhecerem validade no episódio Buratti, o fato de ter resultado em prova pública contra importante membro do Poder Executivo está estimulando muita gente a sugerir que as CPIs também colham provas de forma ilícita, sob pretexto de fortalecer os processos de cassação dos mandatos dos políticos acusados de criar, receber e distribuir o "valerioduto".

A manobra é perigosa e desnecessária. Perigosa, porque não esconde a intenção de desmoralizar os trabalhos de investigação que vêm sendo realizados com cuidado, no que diz respeito à participação de deputados e senadores; desnecessária, porque a apuração da falta de decoro não carece de prova cabal. Trata-se de uma conduta subjetiva, que o Congresso deixa ao arbítrio do plenário. Basta a convicção da maioria regimental e, ponto final, o mandato está cassado. Sequer cabe recurso ao Supremo Tribunal Federal.

Aliás, o Supremo anda vendo com maus olhos as tentativas do Ministério Público de produzir provas para intervir no processo político, porque lá foi decidido recentemente que investigar é ato privativo da polícia, por determinação do art. 144, IV, da Constituição. Realmente, no final do ano passado, a nossa mais alta corte de justiça, "considerando que os elementos que serviram de base à denúncia provêm exclusivamente de dados obtidos em investigação criminal, realizada pelo Ministério Público", rejeitou uma denúncia, sob fundamento de que o Ministério Público "não possui competência para realizar diretamente investigações na esfera criminal, mas apenas de requisitá-las à autoridade policial competente", nos termos do art. 129, VIII, da Constituição.

O acórdão frisou que "o Código de Processo Penal não autoriza, sob qualquer pretexto, semelhante deslocação da competência, ou seja, a substituição da autoridade policial pela judiciária e membro do MP na investigação do crime".

Diante disso, não é demais lembrar que o Congresso declarou o presidente Fernando Collor de Mello impedido de continuar a exercer as funções do seu cargo por falta de decoro; e que, no processo crime a que foi submetido em seguida, terminou absolvido, por unanimidade de votos, por falta de provas.

ANTÔNIO AUGUSTO DUNSHEE DE ABRANCHES é advogado.