Título: Mortandade no paraíso
Autor: David Zee/Alfreso Lopes
Fonte: O Globo, 15/09/2005, Opinião, p. 7

A chegada no Rio de Janeiro, seja na orla da Zona Sul, na Lagoa Rodrigo de Freitas ou nas pontes que dão acesso à Barra e ao Recreio, é sempre um deslumbramento. Visto do ar, do mar ou da terra, não conheço recorte mais bonito entre baía, montanhas e lagoas. No entanto, só os cidadãos que residem nesse paraíso podem ter noção de como estamos maltratando a nossa natureza.

Assistimos, mais uma vez, no feriado de 7 de setembro, à terrível mortandade de peixes na Lagoa de Marapendi, quando foram recolhidas mais de dez toneladas de cardumes de tilápias, tainhas, savelhas e paratis. E quem desconhece as causas?

Vítimas do descaso das unidades paralisadas de tratamento de esgoto dos condomínios, da poluição sem limites fruto do despejo irregular de detritos, do assoreamento que destrói a flora aquática, não morrem apenas peixes e plantas. Destruímos os ecossistemas da região. Exatamente aquilo que nos oferece qualidade de vida, integração com a natureza e valor ao nosso patrimônio material.

Temos que ser realistas e reconhecer que a maior parte das áreas de preservação ambiental do Rio de Janeiro vem sendo degradada e sofre com ocupações desordenadas. Adianta, então, discutirmos se a questão está no âmbito de atuação de Serla, Ibama, Cedae ou Patrulha Ambiental? Esses podem ser os órgãos responsáveis, mas a realidade comprova que não há efetivo suficiente, transportes adequados, tecnologia, enfim, investimentos que viabilizem a eficácia de suas operações.

Então, está na hora de nós mesmos, cidadãos que escolhemos o Rio de Janeiro para morar, criar nossos filhos e estruturar nossas empresas, discutirmos com consciência os caminhos possíveis, as melhores soluções. Nos últimos meses acompanhamos na imprensa o debate sobre o projeto de implantação de eco-resorts na Área de Proteção Ambiental do Parque de Marapendi. Moradores, empresários e ambientalistas encaram a idéia com restrições. No entanto, é fundamental aprofundar a discussão.

A APA de Marapendi foi criada em 1991, embora a região já fosse protegida por legislação ambiental desde 1981. A área, com cerca de um milhão de metros quadrados, contempla os terrenos que margeiam a lagoa e a faixa de areia entre a avenida litorânea e o mar. As fiscalizações e recursos para preservar o parque, formado por vegetação de restinga e manguezais, com espécies de fauna e flora ameaçadas de extinção, são insuficientes. Então, por que não adequar as regras para construção exigindo em troca medidas de compensação ambiental?

A possibilidade de edificações na área sempre existiu. No entanto, há 14 anos foi definido um índice de construção de 15%, o que restringia os projetos de empreendimentos à forma piramidal, em degraus. O que a Câmara dos Vereadores aprovou agora foi uma adequação desse índice para 30%, possibilitando as edificações em formas paralelas, além de liberar a ocupação do nível dos pilotis por espaços para centro de convenções, restaurantes e estrutura de apoio operacional.

A decisão permite a instalação de quatro ou cinco hotéis, em dois resorts, ocupando uma área de dois mil metros quadrados a uma distância de três quilômetros entre si. Embora, com isso, as áreas de construção tenham sido ampliadas, isso só significa a viabilização econômica do projeto. O gabarito de três andares e a ocupação de apenas 10% dos terrenos foram mantidos.

A adequação oferece uma oportunidade ímpar de incluir nossa cidade no roteiro preferencial de um dos principais atrativos de viagens do mundo contemporâneo, o ecoturismo. O Rio de Janeiro pode conquistar, com isso, os investimentos dos maiores grupos mundiais do setor, hoje com atenção dirigida apenas para a Região Nordeste do país. Grandes marcas do turismo internacional, como os grupos Ritz Carlton e Four Seasons, que ainda não tiveram interesse em operar no Brasil, buscam oportunidades como essa. E cabe a nós a consciência de que agregar valor econômico aos ecossistemas que queremos preservar é a melhor solução.

Além disso, o turismo é a grande vocação do Rio. Um grande gerador de empregos, de educação e de ascendência social. Dois mil quartos em hotelaria classe A em eco-resorts significam em torno de três mil empregos diretos, sem falar nos postos de trabalho em construção civil, paisagismo, transporte, comércio, alimentação etc. Sabemos que a degradação das lagoas acontece, hoje, porque os empreendimentos não se sentem responsáveis pela natureza fora de suas grades e muros. No caso da Lagoa de Marapendi, a realidade se opõe ao próprio nome do lugar, já que Marapendi , de origem indígena, significa "mar limpo". Já um eco-resort usará a lagoa como parte integrante de sua estrutura.

A participação da sociedade em todas as etapas do processo de planejamento de alterações urbanísticas é fundamental. Como a questão será debatida no Ministério Público, esperamos que todos os segmentos da sociedade interajam para levantar os pontos positivos e negativos. A natureza é nossa maior parceira mas se não a preservarmos ela se vinga, como temos assistido em tantas catástrofes ambientais. Por isso, encontrar soluções para recuperar a qualidade ambiental que foi perdida ou está gravemente ameaçada é responsabilidade de todos nós.

ALFREDO LOPES é presidente da Associação de Hotéis do Estado do Rio de Janeiro (ABIH-RJ).

Adianta discutirmos se o problema é da Serla, do Ibama, da Cedae ou da Patrulha?

Caminho para a favelização

O debate sobre a APA - Área de Proteção Ambiental - de Marapendi recoloca na ordem do dia o tema fundamental do desenvolvimento sustentável no complexo ecossistema da Baixada de Jacarepaguá.

Acredito que tanto a ocupação voraz dessa região, arrasando todo esse acervo ambiental acumulado ao longo de milhares de anos, quanto o impedimento ao usufruto desses recursos naturais são resultado da mesma insensatez. Conciliar o equilíbrio do uso desses recursos naturais com a manutenção das condições básicas para a sobrevivência da essência da vida local, através da tecnologia disponível, isto sim, é aceitar o desafio do desenvolvimento sustentável.

Combinar a fragilidade desse ecossistema - lagunas costeiras, restingas, praias, maciços cristalinos e vegetação exuberante de mata atlântica - com a inevitável e acelerada ocupação urbana exige decisões responsáveis.

Querer assegurar um benefício ambiental apenas para que alguns poucos tenham um verdadeiro jardim em seu quintal, pendurando a conta da desapropriação indireta dos terrenos no poder público, decerto não é moralmente justo.

Por outro lado, acreditar que o poder público investirá na APA de Marapendi ou qualquer área que exija uma política permanente de preservação é comprovadamente outra utopia. A APA de Marapendi foi criada em 1993 e, passados 12 anos, praticamente nada foi feito e as cicatrizes reveladoras da crescente degradação já são muitas. Um abandono causado por uma estratégia de uso e ocupação inviável tanto para o governo como para a iniciativa privada e a sociedade em geral.

A viabilização da APA de Marapendi exige uma reflexão realista, fundamentada na partilha dos "custos" para a implantação e competente manutenção dos recursos naturais e equipamentos que comporão este parque costeiro municipal.

Para que isso ocorra e como primeiro passo dessa reflexão, devemos ajudar a promover uma regulamentação de uso e ocupação, suficientemente restritiva para a manutenção dos níveis ambientais e de rara beleza desejados pela sociedade. E, ao mesmo tempo, tornar a ocupação economicamente atrativa.

Quanto mais perfeito for esse equilíbrio, maiores serão os benefícios para toda a população carioca - não apenas de privilegiados - com a combinação de riquezas diversas, como beleza natural, empregos, qualidade de vida, harmonia ambiental e, principalmente, orgulho de morar em um local onde todos querem passar suas férias.

Essa regulamentação deve permitir uma partilha de encargos e custos de viabilização da APA de Marapendi. Os proprietários devem se responsabilizar pela implantação e manutenção do parque municipal. O poder público deve estabelecer uma regulamentação de uso que permita uma exploração compatível com as características ambientais locais, além de arcar com todos os custos de manutenção da área de proteção ambiental. Caberia à sociedade acompanhar, promover e fiscalizar soluções de consenso.

Esta seguramente seria a solução mais justa e construtiva. Precisamos entender que a todo benefício corresponde um custo e a todo dever corresponde um direito.

Enquanto a incompreensão e a visão segmentada reinarem no projeto de ocupação da Baixada de Jacarepaguá, a harmonia do todo e a sobrevivência do pouco que resta estarão sempre comprometidas, abrindo caminho para a favelização.

DAVID ZEE é professor da Uerj e da Unigranrio.

A viabilização da APA de Marapendi exige uma reflexão realista