Título: LULA SUBVERTEU O ESTADO LAICO
Autor: DANIEL SARMENTO
Fonte: O Globo, 18/09/2005, Opinião, p. 7

Opresidente Lula encaminhou carta à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirmando que não tem intenção de apresentar ao Congresso Nacional o anteprojeto de lei elaborado por comissão tripartite, instituída pelo próprio governo e integrada por representantes dos poderes Executivo, Legislativo e da sociedade civil, que, após ampla discussão, propôs uma profunda revisão na anacrônica legislação brasileira sobre o aborto, editada em 1940.

A proposta básica do anteprojeto é de legalização do aborto no trimestre inicial da gestação, na linha da tendência internacional, visando à proteção dos direitos à saúde, à autonomia reprodutiva e à igualdade da mulher. Esclareço, desde logo, que não é meu propósito discutir aqui o explosivo tema do aborto.

Já se levantou a suspeita de que a decisão do presidente representaria tentativa de barganhar o apoio da CNBB, num momento em que seu governo, mergulhado até o pescoço no escândalo do mensalão, é assombrado pelo fantasma de um possível impeachment. Mas também não pretendo enveredar pela discussão das reais intenções do gesto do nosso chefe de Estado.

O que quero examinar é simplesmente a justificativa que foi apresentada pelo presidente para a sua decisão e a sua compatibilidade com os princípios democráticos acolhidos pela Constituição brasileira.

Na correspondência enviada à CNBB, Lula disse que pela sua ¿identificação com os valores éticos do Evangelho¿ e pela fé que recebeu de sua mãe, não tomará ¿nenhuma iniciativa que contradiga os princípios cristãos¿.

Ora, ninguém questiona que o presidente da República, como qualquer pessoa, tenha o direito de professar a religião que preferir e de guiar-se, na sua vida pessoal, pelos respectivos princípios e dogmas. Porém, o Brasil, desde a proclamação da República, é um Estado laico, e isto o presidente, que jurou cumprir a Constituição, não pode ignorar.

A laicidade do Estado, consagrada no art. 19, inciso I, da Constituição, não significa apenas a inexistência de uma religião oficial no país. Mais que isso, ela impõe a completa separação entre religião e Estado, tanto para proteger as confissões religiosas de indevidas intervenções dos governantes de plantão, como para assegurar aos cidadãos que as decisões dos poderes do Estado sejam sempre tomadas com fundamento em razões públicas, e não a partir de dogmas de qualquer credo religioso, ainda que majoritário.

Estado laico não significa Estado ateu, pois o ateísmo não deixa de ser uma concepção religiosa. Na verdade, o Estado laico é aquele que mantém uma postura de neutralidade e independência em relação a todas as concepções religiosas, em respeito ao pluralismo existente em sua sociedade.

Num país como o Brasil, em que convivem lado a lado pessoas das mais diversas religiões, além de ateus e agnósticos, a laicidade do Estado representa garantia fundamental da igualdade e da liberdade dos cidadãos. Por isso, quando o presidente afirma que exercerá a autoridade que lhe foi conferida por todo o povo brasileiro com base nos princípios cristãos, ele desrespeita profundamente não só todos aqueles que não professam a sua religião, como também os que, católicos como ele, têm uma visão mais clara sobre os fundamentos legítimos do poder do Estado numa democracia constitucional.

No momento, a sociedade brasileira discute, além do aborto, uma série de outros temas polêmicos em que a Igreja Católica tem posição firmada: união civil de pessoas do mesmo sexo, pesquisa em células-tronco, eutanásia etc. Nestas e em outras questões, as razões religiosas são válidas na esfera da consciência de cada um, mas não podem ser o fundamento dos atos estatais.

Por tudo isto, o gesto de Lula representa um perigoso precedente. É hora de abrir os olhos, pois não é aceitável que o presidente de uma república laica e democrática fundamente um ato de governo na ¿fé que recebeu de sua mãe¿!

DANIEL SARMENTO é professor de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e procurador regional da República.