Título: DO TRABALHO ESCRAVO À CLT
Autor: Geralda Doca
Fonte: O Globo, 18/09/2005, Economia, p. 31

Empresas criam rede para proteger trabalhador contra condições análogas à escravidão

Com 21 anos, Fernando Santos da Silva trabalha desde 2000 para o próprio sustento, mas só agora pode encher o peito para dizer que é um assalariado. O tempo em que esteve no campo, derrubando árvores e roçando pasto, ele quer esquecer. Sem saber ler e escrever, conta que era tratado como bicho, comia arroz e feijão quando tinha e dormia em barracos de lona, forrados com palha. Bebia água de poço contaminada e ficou doente várias vezes. Até que, no início deste ano, fiscais do Ministério do Trabalho e da Polícia Federal chegaram à fazenda e resgataram um grupo de trabalhadores em situação análoga à escravidão. Mas a melhor notícia veio alguns meses depois:

¿ Bateram na minha casa, perguntaram o meu nome e disseram que queriam dar emprego aos trabalhadores retirados das lavouras. Não acreditei no que ouvi ¿ disse.

Silva faz parte de um grupo de 32 trabalhadores libertados da escravidão contratado pelo Instituto do Carvão Cidadão (ICC), organização não-governamental criada por oito siderúrgicas do Maranhão e do Pará. Empregado pela Terra Norte, em Marabá, no Pará, ele trabalha na plantação de eucalipto e ganha R$320 por mês. Além de agora ter condições mais dignas, como alojamento e alimentação, Silva está começando a ler, com a ajuda de um professor contratado pela empresa.

A iniciativa do ICC não é isolada. Faz parte da crescente atuação do setor produtivo para criar uma rede de proteção contra o trabalho escravo no país, que resulte em integração ao mercado, para que ele não volte a cair nas garras dos aliciadores. Inspirados nessa experiência, produtores de algodão do Mato Grosso criaram, no início deste mês, o Instituto do Algodão Social. Vão investir R$2 milhões em 18 meses para fiscalizar e orientar os produtores a cumprirem a legislação trabalhista.

Grandes redes de varejo, como Pão de Açúcar, Carrefour e Wal-Mart, estão boicotando produtos que tenham origem ou alguma ligação com esse tipo de crime. Só o Carrefour deixou de renovar cinco contratos com grandes fornecedores nos últimos quatro meses. O principal alvo dos supermercados são os frigoríficos, pois a pecuária tem o maior número de autuações. A Coteminas também está rastreando a origem do algodão na nota fiscal do fornecedor, e a Associação Brasileira dos Exportadores de Carne (Abiec) trabalha na criação de projeto a ser desenvolvido junto aos frigoríficos.

José Orlando de Jesus, de 20 anos, é outro resgatado do trabalho escravo. Depois de cinco anos em atividades de desmatamento, foi contratado este ano pela Terra Norte. Emocionado, conta que hoje pode dormir numa cama e comer carne todo o dia.

¿ A refeição é 100%. Tem carne todo dia ¿ comemorou Jesus, que trabalha três meses na lavoura para ganhar R$200.

Outro que festejou é Antônio Marcos de Araújo, que, com Jesus e Silva, integra o grupo de 29 pessoas resgatadas e reinseridas no mercado de trabalho:

¿ É muito bom ter carteira assinada ¿ disse.

Segundo a diretora técnica do ICC, Cláudia Brito, a contratação faz uma grande diferença no combate ao trabalho escravo.

¿ A cada libertação, era uma angústia. Não sabíamos qual seria o futuro daqueles trabalhadores. Provavelmente, acabariam voltando.

De 600 trabalhadores retirados, pelo Ministério do Trabalho, da escravidão nas fazendas do Maranhão e do Pará este ano, o ICC conseguiu localizar cerca de 240 e já empregou 32. O primeiro passo foi identificá-los, providenciar a documentação e selecionar alguns para preencher vagas nas usinas ou nas fazendas. No total, em 2005 a fiscalização já resgatou no Brasil 2.537 pessoas da escravidão.

Para criar o instituto, os empresários investiram R$240 mil em veículos e computadores, além de um gasto mensal com manutenção de R$75 mil. A entidade também fiscaliza as carvoarias fornecedoras das siderúrgicas associadas.

Para a secretária de Inspeção do Trabalho, Ruth Vilela, um conjunto de medidas como esse começa a se espalhar em todo o país, principalmente depois da assinatura do pacto pela erradicação do trabalho escravo ¿ coordenado pelo Instituto Ethos ¿ e que teve a adesão, em maio, de grandes empresas brasileiras. A idéia básica foi fechar o cerco aos exploradores de mão-de-obra escrava, boicotando todos os produtos que, na origem da cadeia produtiva, tenham ligação com esse tipo de crime.

¿ Os empresários estão agindo porque estão sendo prejudicados. Seria ingenuidade pensar que essa mobilização é só pelos direitos humanos ¿ disse a secretária.

No caso das siderúrgicas, destacou ela, além dos prejuízos para a imagem, elas são multadas quando o ministério flagra trabalhadores irregulares nas carvoarias. A multa é de R$400 por pessoa por falta de registro em carteira. Esse valor pode chegar a R$7 mil, quando são encontradas situações degradantes de estrutura, com prejuízos para a saúde do trabalhador, e ainda há o agravante do cerceamento à liberdade e do endividamento do empregado com alimentação.

O diretor-executivo do Instituto do Algodão Social, Fenix Balaniuc, afirmou que, embora não tenha conhecimento de autuação por trabalho escravo no setor neste ano, há indícios de irregularidades e descumprimento da lei trabalhista, principalmente em novas frentes (lavouras e desmatamento).

Mas o que mais preocupa os algodoeiros de Mato Grosso ¿ grande exportador e responsável por 49% da produção nacional ¿ é a pressão de organismos internacionais para que os países não comprem mercadorias de quem explora mão-de-obra escrava.

¿ Não queremos apenas evitar a multa. A responsabilidade social e a certificação do setor têm reflexo direto no comércio internacional ¿ disse ele.

As empresas associadas ao Sindicato Nacional das Distribuidoras de Combustíveis (Sindicom) também estão boicotando usinas de cana que exploram trabalho escravo. Um dos casos mais recentes foi a suspensão do contrato de fornecimento com a Destilaria Gameleira, do Mato Grosso.