Título: Primeira tarefa
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 17/09/2005, O País, p. 2

Está virando provérbio a afirmação de que o país sairá melhor da atual crise política. O presidente Lula fez uso dela ontem, dizendo que a democracia sairá fortalecida. Certamente é saudável uma democracia que enfrenta sem abalos cem dias de crise movida a denúncias que atingem o Executivo e o Legislativo. A economia vem mostrando excepcional autonomia. Mas boa, nenhuma crise é.

Se a economia vem se mostrando tão exuberante dentro da crise, talvez melhor ainda estivesse sem ela. A crise já trouxe custos políticos objetivos, com o colapso da agenda legislativa, e também os custos imensuráveis, de ordem subjetiva, como a descrença nos partidos, nos políticos e no próprio sistema representativo, esta depressão generalizada diante do fluxo ininterrupto de denúncias e da prolongada pancadaria política. Se a participação política se reduz - hipótese a ser verificada na eleição do ano que vem - a democracia não sai mais forte.

Mas ainda se espera que, além de cassações, a crise produza mudanças nas leis e nas regras, sobretudo eleitorais, reduzindo suas conexões com a corrupção. A cassação de Roberto Jefferson por um plenário silencioso, que não comemorou sua própria decisão (cassar colegas deve ser mesmo um ato doloroso, ainda quando necessário) foi sinal de que a Câmara está disposta a cumprir sua penitência. Outras cassações virão. A tão criticada decisão do STF, garantindo o direito de defesa aos deputados cassáveis, não servirá, como se tem dito, para salvar cabeças. Pelo contrário, ela indica à Câmara que, ao cortar na própria carne, não deve reproduzir o pensamento que estaria na origem da montagem de um esquema financeiro, pelo PT, para bancar campanhas e aliciar aliados: o de que os fins justificam os meios. Cassando de qualquer jeito para contentar a opinião pública, violando princípios democráticos, a Câmara acabará legitimando contestações à sua faxina penitente.

Mas o tempo está passando, o dia 30 chegando e não se nota qualquer movimentação dos líderes para garantir, pelo menos, a aprovação da emenda constitucional que dilatará o prazo para aprovação de mudanças nas regras eleitorais. Aos que comandam as investigações talvez não seja conveniente admitir que a crise tem uma natureza sistêmica, uma relação direta com o processo político-eleitoral, pois isso vai contra a interpretação de que ela é fruto apenas de uma desmedida ambição de poder do PT.

O adiamento excepcional do prazo para 31 de dezembro dará tempo ao Congresso para, resolvido o problema Severino Cavalcanti, encaminhadas as cassações, aprovar pelo menos as medidas emergenciais para a eleição do ano que vem, destinadas a reduzir os custos e normatizar a arrecadação de recursos para financiar as campanhas. O Senado já fez sua parte, mas na Câmara não há hoje o menor clima para se tratar disso. Não haverá enquanto não for resolvido o problema da presidência. E quando isso acontecer, com muito esforço será possível, no máximo, aprovar a emenda que dilata o prazo para se votar as mudanças. Se houver mesmo disposição para aprová-las dentro do esforço para recuperar a imagem da Casa.

Cresceram muito nas últimas horas as chances de Michel Temer, do PMDB, ser o novo presidente da Câmara. Caíram as de Thomaz Nonô (PFL) e as de qualquer nome petista.

As horas

Severino Cavalcanti chegou a contemplar fortemente a hipótese de renunciar apenas à presidência da Câmara para enfrentar como deputado o processo de cassação. A alguns demonstrou disposição para refutar as acusações do empresário Buani, inclusive o destino do cheque de R$7.500. Saindo-se bem - embora esteja em vigor a idéia de que processos políticos dispensam provas - poderia salvar-se no plenário com a ajuda dos aliados fiéis do baixo clero. Mas também este caminho foi abandonado depois que a Polícia Federal desqualificou a versão de sua secretária e de seu advogado, de que Buani emprestara o dinheiro, anotando o valor dos juros no verso do cheque, para honrar dívidas de campanhas de seu falecido filho. Agora, parece tudo uma questão de horas.

Primeira baixa na esquerda

Não ocorreu no PT, mas no PCdoB, a primeira desfiliação por conta da crise. Militante do partido há 42 anos, o deputado Sergio Miranda, tido como um dos mais preparados e aplicados da Câmara, deixou o partido anteontem. Já vinha de um conflito com a direção por ter votado contra a reforma previdenciária, o que lhe valeu um afastamento do Comitê Central. As diferenças se aguçaram na crise política, diante da fidelidade do partido ao governo Lula e da disposição para manter a aliança com o PT.

- Saio com a sensação de perda que toda ruptura provoca, mas esta foi uma imposição da honestidade política - diz Miranda, que deve se filiar ao PDT.

JOSÉ DIRCEU marcou para amanhã, dia da eleição direta no PT, uma reunião com intelectuais paulistas, organizada pelo escritor Fernando Morais e pelo jornalista Raimundo Pereira. Apresentará sua visão da crise e falará de sua própria condição - sujeito à cassação, como sempre diz, não pelo que tenha feito, mas pelo que representa na trajetória da esquerda.