Título: O enigma
Autor: Míriam Leitão/Débora Thomé
Fonte: O Globo, 17/09/2005, Economia, p. 30

A economia sempre influenciou a política. Isso é um clássico das campanhas eleitorais. A perspectiva econômica para os próximos 12 meses é muito boa e isso teria, então, que levar a uma única conclusão: o presidente Lula será beneficiado na disputa de um segundo mandato. Contudo, o bom momento econômico atual contrasta com a queda da popularidade e das intenções de voto no presidente Lula.

O enigma que está se formando agora é que esta relação entre economia e política está alterada: a inflação está em queda e a renda está em recuperação. Normalmente, isso beneficia quem está no poder. Outro efeito é o de melhorar as expectativas do consumidor.

Está ocorrendo o oposto: a expectativa do consumidor está em queda. A última CNT-Sensus mostrou queda da popularidade do presidente, da aprovação do governo, das intenções de voto, das expectativas para os próximos seis meses e da avaliação da política econômica. Hoje 52% a consideram inadequada e 34,9% apenas acham que é adequada. Essa relação era inversa há seis meses.

Velhas categorias e certezas das projeções sobre o impacto da economia na política podem não valer mais. O IBGE divulgou esta semana que, há 20 meses, as vendas do comércio crescem em relação a igual mês do ano anterior. O otimismo deveria estar em alta. Num ambiente de avassalador noticiário negativo, como a crise produziu nos últimos cem dias, a boa conjuntura econômica não garantiu o aumento da popularidade do presidente e do apoio à política econômica.

Ela faz ainda menos sucesso dentro do partido do governo. Ontem, num debate, os candidatos à presidência do PT deram mais algumas demonstrações de que são contra a política econômica escolhida pelo governo. A eleição no PT neste fim de semana dará um sinal determinante. Se a corrente ligada ao governo perder, aumentará a pressão por mudanças na política econômica; se o oficialismo mudar, também se pedirá alguma mudança que possa dourar o discurso eleitoral do ano que vem.

Esta controversa política, sempre na berlinda, é que permite que a perspectiva econômica continue sendo boa. A inflação poderá continuar em queda nestes próximos 12 meses que nos separam da eleição presidencial. Os juros em queda podem elevar o nível de investimento e emprego. O comércio exterior produzirá novo bom saldo comercial, irrigando as contas externas e reduzindo o impacto do estresse político do processo eleitoral na taxa de câmbio.

As contas externas estão boas como nunca. Há uma coleção de dados bons: caiu a dívida, aumentaram as reservas, há três anos o país tem superávit em transações correntes, caiu o percentual de dívida corrigida pelo dólar. Isso aumenta muito a chance de que o país possa passar pelas incertezas naturais de um processo eleitoral sem a disparada do câmbio da eleição de 2002.

No entanto, há candidatos que assustam ainda o investidor; além disso, uma virada na situação internacional não está afastada. Não se está livre de outra transição difícil, mas as chances de uma passagem mais tranqüila para o próximo governo são grandes.

No governo, apostam que vai valer a velha lei das eleições, de que o quadro econômico bom possa influenciar positivamente o quadro eleitoral em favor do candidato oficial. As tarifas tendem a subir menos nos próximos 12 meses. Na telefonia, há uma certa dúvida, porque, justamente no melhor ano para usar o IGP-M como fator de correção, será adotado um índice setorial. Na energia elétrica, a tendência é de correção bem menor. Será suspensa uma parcela no preço chamada "ativos regulatórios", um acréscimo à tarifa que compensava um reajuste menor em abril de 2003. Essa parcela foi para valer apenas por um período que acaba em abril de 2006. A tarifa já teria que cair, portanto. Como os IGPs estão baixíssimos, os reajustes anuais tendem a ser menores. Com tarifas subindo menos e inflação em queda, haverá mais renda disponível. E isso alimentaria o otimismo econômico.

Pode ser assim, mas é preciso cautela pelo fato de que a sociedade tem reagido de forma diferente do que se estabeleceu no manual. Até lá o pior da crise atual terá passado; em algum momento, haverá um desfecho. Mas as cicatrizes permanecerão. A imagem do presidente Lula foi afetada, quebrou-se a aura de político diferente que o marketing petista havia construído e todo esse vasto escândalo será material de campanha dos adversários.

O que é um bom quadro econômico para investidores é diferente da percepção que tenha o cidadão da sua situação econômica. Há uma defasagem entre os índices que aparecem e são comemorados na imprensa e o momento em que está acontecendo o fato econômico. O nível do desemprego ainda é alto, apesar de ter caído; a renda caiu muito em todas as crises dos últimos anos e a recuperação tem sido lenta; os juros estão em queda, mas ainda são muito altos. Ontem, a bolsa bateu recorde, o risco foi o menor dos últimos oito anos e o dólar fechou abaixo dos R$2,30, em R$2,29, mesmo assim, a pergunta que o cidadão comum se faz é a que me foi feita por um taxista esta semana: por que todo mundo diz que a economia vai bem se eu não sinto isso?

O ruído político, a decepção com o governo, as hesitações do presidente Lula como condutor do barco na tempestade vão ter impacto na eleição do ano que vem. O grande enigma será: até que ponto a economia poderá resgatar o governo. É bom lembrar que Fernando Henrique se reelegeu em 98 no meio de uma crise e Bill Clinton não fez o sucessor depois de oito anos de exuberância econômica. A relação entre política e economia é mais complexa do que parece.