Título: O ÚLTIMO CAÇADOR DE NAZISTAS
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Fonte: O Globo, 21/09/2005, O Mundo, p. 28

Morre Simon Wiesenthal, que ajudou a prender 1.100 criminosos da Segunda Guerra

Sobreviver aos campos de concentração nazistas, mas perder 89 parentes, parece ter imposto a Simon Wiesenthal uma missão para o resto da vida: levar à Justiça os responsáveis pela morte de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e manter viva a memória do Holocausto. Sua tarefa só terminou ontem, quando o mais famoso caçador de nazistas morreu em seu apartamento em Viena. O homem que escapou de fuzilamento, fome e atentado, faleceu aos 96 anos enquanto dormia, vítima de falência dos rins. Embora o centro que fundou prometa levar sua missão adiante, para muitos a morte de Simon Wiesenthal representa o fim de uma era.

- Para os jovens aqui, eu sou o último. Eu sou aquele que ainda pode falar. Depois de mim, é História - disse certa vez.

Wiesenthal ajudou a levar a julgamento cerca de 1.100 nazistas e ficou famoso ao ajudar na captura na Argentina de Adolf Eichmann, a quem Adolf Hitler confiou o programa de genocídio de judeus. Apesar disso, Wiesenthal carregava duas grandes frustrações: não conseguir prender o chefe da Gestapo, Heinrich Muller, e o médico Josef Mengele, que fazia experiências com judeus no campo de Auschwitz e acabou morrendo no Brasil.

Os nazistas mataram ao todo 11 milhões de civis, incluindo os milhões de judeus. O instituto que leva o seu nome acredita que haja ainda centenas de criminosos em liberdade.

- A missão pessoal de Wiesenthal terminou, mas há outros que ainda levam o trabalho adiante - disse Efraim Zuroff, diretor do Centro Simon Wiesenthal em Israel.

O funeral será realizado hoje na capital austríaca, mas o corpo deverá ser enterrado em Israel. "Simon Wiesenthal agiu para levar a Justiça àqueles que fugiram dela. Ao fazer isso, foi a voz de seis milhões", declarou o Ministério do Exterior de Israel.

Nascido em 1908, numa família de judeus ortodoxos em Lviv, então parte do Império Austro-Húngaro, Wiesenthal sobreviveu à invasão soviética no fim da década de 30 e à chegada dos nazistas em 1941. Passou quatro anos em campos de concentração e por pouco não foi fuzilado. Então um jovem arquiteto, viu a mãe ser levada para a execução e acreditou ter perdido a mulher, Cyla.

Ele foi preso pelos alemães em 1941 e passou por 12 campos antes de ser libertado por americanos no campo de Mauthausen, Áustria. Wiesenthal pesava 50 quilos, havia perdido 89 membros da família, mas conseguiu reencontrar a mulher, que escapara fingindo ser católica e não judia.

- O que me tocou especialmente foi que, apesar de sua experiência pessoal, nunca se tornou amargo e seguiu adiante de uma maneira admirável - disse o ex-chanceler alemão Helmut Kohl, enquanto o atual chanceler, Gerhard Schroeder, declarou que Wiesenthal se comprometeu sempre quando outros ficaram calados.

No escritório com três salas do Centro de Documentação em Viena, Wiesenthal passou anos recolhendo pistas sobre criminosos de guerra, com a colaboração de uma rede de informantes, agentes de governo, jornalistas e mesmo ex-nazistas - com quem negociou, apesar de ser criticado por isso.

Ele afirmava que sua motivação pessoal não era vingança, mas sim justiça: "O meu trabalho é um aviso aos assassinos de amanhã, de que nunca descansarão."

Wiesenthal começou a memorizar os nomes de seus carcereiros ainda nos campos. Um trabalho no Escritório para Crimes de Guerra do Exército americano - onde ajudou a recolher provas contra criminosos de guerra em 1945 - foi o início de uma missão que se estendeu por seis décadas.

- Quando o Holocausto terminou em 1945 e todo mundo foi para casa esquecer o que aconteceu, ele sozinho ficou para lembrar - disse o rabino Marvin Hier, diretor do centro em Los Angeles.

Após a guerra, Wiesenthal fundou o Centro de Documentação Judaico, em 1947, e abriu um escritório em Viena em 1961, num país que, embora anexado pela Alemanha em 1938, tinha uma postura ambígua em relação ao caçador de nazistas.

"A sobrevivência é um privilégio que confere obrigações. Eu estou sempre me perguntando o que posso fazer pelos que não sobreviveram", escreveu no livro "Justiça, não vingança".

O homem robusto, de bigode, às vezes ria quando o viam como inofensivo e continuou suas investigações mesmo diante de ameaças de seqüestro e morte contra ele, a mulher e a filha, Pauline. Em 1982, sua casa em Viena foi atingida por uma bomba incendiária, mas ele escapou ileso. Neonazistas alemães e austríacos foram acusados e um homem foi preso. Wiesenthal se recusou a se mudar, insistindo que havia um simbolismo em fazer seu trabalho num antigo bastião do nazismo e do anti-semitismo.

"Sobreviventes deveriam ser como sismógrafos. Deveriam sentir o perigo antes dos outros, identificar os indícios e revelá-los. A eles não é permitido errar uma segunda vez ou encarar como inofensivo algo que pode levar a uma catástrofe", disse.

Para o presidente da França, Jacques Chirac, o mundo perdeu "um lutador incansável pela justiça. Em Nova York, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, disse que o compromisso de Wiesenthal com a justiça "envia uma importante mensagem de que não deve haver impunidade para genocídio e crimes contra a Humanidade". Para muitos, ele virou um símbolo.

- Acho que ele será lembrado como a consciência do Holocausto - disse o rabino Hier.

O destino dos criminosos

FRANZ PAUL STANGL: Integrante da Polícia Judiciária alemã e membro ativo do Partido Nazista, Stangl comandou dois dos principais campos de extermínio na Polônia: Sobibor e Treblinka. Acusado da morte de milhares de judeus, fugiu e fixou residência em São Paulo. Descoberto, Stangl foi extraditado para a Alemanha. No julgamento do pedido de extradição, em junho de 1967, foram revelados detalhes de como internava enfermos e idosos em casas de banho disfarçadas, onde mantinha câmaras de gás. Ele morreu quatro anos depois, numa penitenciária onde cumpria prisão perpétua. Sobre a prisão de Stangl, Wiesenthal contou que certa vez um ex-oficial da Gestapo lhe pedira US$25 mil para revelar o paradeiro. Wiesenthal reuniu US$7 mil. "Eu tinha três possibilidades: expulsar o homem, estrangulá-lo ou negociar com ele. Escolhi a terceira", contou o caçador de nazistas.

ERNST ROSCHAMANN: O chamado "carniceiro de Riga" morreu em Assunção, em 1977. Segundo o advogado e jornalista Carmelo Módica, Roschamann morreu num hospital para pobres, de ataque do coração, após entrar clandestinamente no Paraguai, a partir da Argentina. Como não conseguiam identificá-lo no Paraguai, fotos foram mandadas para Wiesenthal, em Viena, que o procurava por crimes cometidos no campo de Riga. Wiesenthal comprovou a identidade de Roschamann. "Ele reconheceu Roschamann porque faltavam dois dedos no pé esquerdo", contou Módica.

JOSEF MENGELE: Uma das grandes frustrações de Wiesenthal foi não ter conseguido capturar o médico nazista Josef Mengele, acusado de usar prisioneiros dos campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, como cobaias em terríveis experiências. Chamado de "anjo da morte", era acusado de ter exterminado milhares de pessoas, a metade delas crianças. Wiesenthal procurou Mengele até junho de 1985, quando um corpo exumado num cemitério de Embu, em São Paulo, foi identificado como o do carrasco nazista.

KARL SILBERBAUER: Foi o oficial da Gestapo quem prendeu a menina Anne Frank, escondida com a família num compartimento secreto de um prédio em Amsterdã, Holanda. Wiesenthal conseguiu localizar Silberbauer trabalhando como inspetor da polícia de Viena. Quando este foi suspenso, Wiesenthal conseguiu que o caso tivesse grande repercussão na imprensa holandesa. No entanto, o processo não foi a frente porque promotores consideraram que Silberbauer não era responsável pela deportação da menina para um campo de concentração e sua conseqüente morte. Mas Wiesenthal ajudou a prender outros criminosos de guerra, como Gustav Franz Wagner, ex-subcomandante do campo de Sobibor. Wagner morreu em 1980, durante o processo de extradição.

ADOLF EICHMANN: Um cartão-postal deflagrou a prisão do homem considerado o responsável pela logística do programa de extermínio. Eichmann era "administrador de transportes", controlando os trens que levavam para os campos de extermínio milhões de pessoas consideradas "indesejáveis" pelos nazistas: judeus, ciganos, negros, homossexuais, comunistas e deficientes físicos e mentais. Em 1954, Wiesenthal recebeu um cartão de um amigo, que havia se mudado para a Argentina, dizendo: "Eu vi o porco sujo do Eichmann. Ele mora perto de Buenos Aires e trabalha para uma companhia de água." Wiesenthal lançou uma caçada internacional que resultou na captura do criminoso pelo serviço secreto israelense. O Mossad seqüestrou Eichmann numa rua de Buenos Aires e o levou para Israel, onde foi julgado e enforcado.

Repressão a neonazistas, um novo objetivo

A morte de Simon Wiesenthal pode simbolizar o momento em que a caça aos criminosos nazistas está chegando ao fim. No momento em que vários sobreviventes do Holocausto homenageavam Wiesenthal, muitos afirmavam que a luta agora deve ser voltada contra os movimentos neonazistas espalhados por todo o mundo, e não mais na busca pelos criminosos de 60 anos atrás.

- A caça aos nazistas não é mais relevante. Não há mais nazistas importantes vivos. Qualquer um desses já estaria muito velho para despertar algum interesse - disse ontem Yosef Lapid, sobrevivente do Holocausto e ex-ministro da Justiça de Israel.

Segundo Micha Brumlik, diretor do Instituto Fritz Bauer, o número de criminosos nazistas ainda vivos está entre 400 e 500, muitos vivendo na América do Sul e em países bálticos:

- A maioria destes homens está com mais de 90 anos. Duvido que eles ainda possam ser julgados.

Outro fator levado em consideração por pessoas que participaram da caça aos criminosos nazistas é que a quase totalidade dos sobreviventes teria tido papéis pequenos no extermínio de judeus.

- Os mentores não estão mais entre nós. Restaram suspeitos que teriam 20 e poucos anos ou eram adolescentes durante o Holocausto - afirmou Gad Shimron, ex-agente do serviço secreto internacional israelense, o Mossad, que escreveu livros sobre a caça a nazistas.

Apesar de ninguém afirmar que a caça aos nazistas sobreviventes deve ser declarada terminada - entre março do ano passado e março deste ano cinco nazistas foram condenados - o perigo maior parece estar nos movimentos neonazistas.

O trabalho se dividiria em dois ramos: desacreditar alguns argumentos destes grupos, como a negação do Holocausto, e enfrentar estes movimentos em vários países.

Há diversos grupos neonazistas em funcionamento, com movimentos de tamanho preocupante em Alemanha, Rússia, Bélgica, Dinamarca, Áustria e França. Mesmo no Brasil há grupos no ABC paulista e em Porto Alegre.

"Para os jovens aqui, eu sou o último. Eu sou aquele que ainda pode falar. Depois de mim, é História"

"A sobrevivência é um privilégio que confere obrigações. Eu estou sempre me perguntando o que posso fazer pelos que não sobreviveram"

"Sobreviventes deveriam ser como sismógrafos. Deveriam sentir o perigo antes dos outros, identificar os indícios e revelá-los"

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