Título: QUANDO O TRABALHO MATA
Autor: Cássia Almeida
Fonte: O Globo, 24/09/2005, Economia, p. 31

Segundo OIT, acidentes e doenças ocupacionais tiram a vida de 57 mil por ano no país

Os acidentes de trabalho e doenças ocupacionais matam no Brasil 57.409 por ano, de acordo com a última estimativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgada esta semana, com base no ano de 2001. O número é 22 vezes maior que o captado pelas estatísticas oficiais da Previdência Social para os acidentes de trabalho fatais (o ministério não divulga número de mortos por doenças ocupacionais), que somaram 2.582 em 2003, último dado consolidado. Os acidentes sem mortes, que alcançaram 390.180 naquele ano, segundo a Previdência, representam apenas 3,4% dos 11,3 milhões calculados pelo organismo internacional.

O próprio Ministério do Trabalho reconhece que os números da OIT estão mais próximos da realidade brasileira que os da Previdência.

¿ Os critérios usados são científicos e acredito que estão corretos. A Previdência não capta os acidentes com os trabalhadores informais. E está havendo uma migração das atividades de risco para a informalidade. Isso sem contar com a subnotificação crônica. Estamos trabalhando para aumentar as medidas de segurança ¿ disse Rinaldo Marinho Costa Lima, diretor do Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho do ministério.

Letícia Nobre, doutora em Saúde Pública e chefe da Fundacentro na Bahia, alerta para a urgência da correção dos dados, usando a metodologia da OIT. Os números irreais, segundo ela, afetam as decisões de políticas públicas:

¿ Há vários estudos aqui na Bahia, em Campinas (SP) e no Sul, que mostram uma subnotificação nos acidentes fatais de mais de 80%. No Nordeste, a situação é pior ainda. O gestor público precisa saber das exposições ao risco.

Estudos atestam a notificação precária

O secretário da Previdência Social, Geraldo Arruda, considerou o número da OIT muito alto, apesar de reconhecer os baixos registros. A Previdência depende da comunicação pelas empresas dos acidentes sofridos pelos empregados com carteira assinada, que são menos de 50% dos trabalhadores brasileiros.

¿ Estamos tentando relacionar o número de doenças com a atividade. Se for acima da média, será considerada doença ocupacional. A empresa é que precisará provar que a doença ou o acidente não foram causados no trabalho ¿ explica Arruda.

Distantes das estatísticas, Sonia, Douglas e Marcos estão vivendo sua tragédia particular. Annibal Ferreira, marido dela, pai deles, morreu em 20 de abril passado, depois de passar 30 dias internado em Porto Alegre. Segundo a família, ele caiu de uma escada num navio da Metalnave em 16 de março, mas só foi levado ao hospital quatro dias depois. A queda afetou órgãos internos, causando infecção generalizada.

¿ Ninguém da empresa me avisou que meu marido estava no hospital. No dia 17, ele me ligou chorando, dizendo que estava com muita dor no corpo e com febre. Sem notícias, no dia 20 liguei para o comandante. Só aí me disseram que ele tinha sofrido o acidente, há dois dias não urinava e andava como um velhinho. Nesse momento ele já estava em coma induzido ¿ conta Sonia, que completaria 40 anos de casada em dezembro.

João Marcos Guimarães, advogado da Metalnave, disse que Ferreira, oficial superior de máquinas que trabalhava há seis anos na companhia, não foi levado antes a um hospital porque não quis. Segundo ele, o acidente aconteceu dia 18 de março:

¿ O comandante indagou se ele queria ir ao hospital. Mas ele disse que estava bem e poderia até trabalhar. Houve um procedimento incorreto do funcionário que desceu a escada de frente. O mais seguro seria de costas.

Cerca de 42 mil morrem por enfermidades

Aos 48 anos, Ruth Maria Nascimento respira com dificuldade. Já perdeu 40% da capacidade respiratória. Há sete anos, foi diagnosticada a asbestose, ou o pulmão de pedra, como é conhecida a doença causada pela inalação de fibras de amianto. Ruth contraiu a doença depois de ter trabalhado por 12 anos com a fibra. Em 2004, passou dez dias no hospital com pneumonia e vive fazendo fisioterapia respiratória e nebulização. Quando está bem, consegue pelo menos varrer a casa. Ruth hoje é presidente no Rio da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea). A Fiocruz estima que haja 50 mil trabalhadores expostos à fibra do amianto.

¿ Aqui no Rio, 300 trabalhadores são acompanhados na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e 50 já foram diagnosticados com asbestose. Das cem pessoas que trabalhavam comigo na mesma fábrica, 40 estão doentes e dez já morreram ¿ conta Ruth.

O quadro encoberto da doença ocupacional aparece nas estatísticas da OIT. São 42.514 mortes por doenças no Brasil, na estimativa da organização. A Previdência só divulga os números de doentes, não de mortes pelo mal. Em 2003, foram 21.208 casos.

A exposição ao benzeno nas siderúrgicas, refinarias e indústrias químicas teria deixado doentes cerca de nove mil pessoas, nas estimativas do ex-coordenador da Comissão Nacional do Benzeno, o auditor fiscal Danilo Costa:

¿ Isso sem contar com aqueles que trabalham em postos de gasolina e oficinas mecânicas. O problema é que a Previdência não tem estabelecido o nexo entre as doenças e a atividade, o que tem dificultado o trabalho de identificação.

O número maior de mortes por doença que por acidente não surpreendeu a médica Letícia Nobre. Ela lembra dos agrotóxicos que provocam intoxicações graves, com alto índice de mortalidade. Segundo a OIT, morreram no Brasil 12.282 pessoas por contato com substâncias perigosas:

¿ As doenças acabam matando mais que os acidentes ¿ diz Letícia. (Cássia Almeida)