Título: Era Severino dura 217 dias
Autor: Maria Lima/Isabel Braga/Luiza Damé
Fonte: O Globo, 22/09/2005, O País, p. 3

Pela primeira vez no país, presidente da Câmara renuncia por denúncia de corrupção

Voltarei, voltarei, voltarei. No discurso de despedida, 217 dias depois da posse em fevereiro, o ex-deputado e ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti (PP-PE) anunciou sua renúncia ontem repetindo três vezes que será absolvido pelo povo, que vai recuperar seu mandato e voltará à Casa graças aos pernambucanos. Sua promessa foi recebida pelo plenário com um silêncio constrangedor, só quebrado pela gritaria e pela conseqüente pancadaria entre estudantes e seguranças que tomou conta das galerias assim que Severino entregou ao presidente interino da Câmara, José Thomaz Nonô (PFL-AL), sua carta de renúncia. Foi a primeira vez na História do país que um presidente da Câmara renunciou ao mandato e ao cargo por causa de denúncias de corrupção.

No discurso em tom emocional, Severino começou citando o "sertanejo forte" de Euclides da Cunha para relembrar a infância pobre e a juventude difícil, sem oportunidades de uma melhor formação. Disse que foi tirado do cargo por uma elite que se acha dona do Congresso e que não o perdoou por ter dado ouvidos ao baixo clero. E, revelando mágoa, lamentou que a luta por sua sucessão tenha se tornado mais importante que as provas de sua inocência.

"Empobrecimento ilícito", diz Severino

Em sua defesa, Severino disse que deixa a Câmara como entrou: pobre e endividado.

- Executem a devassa. Revolvam minha vida. Exponham minha memória. Consultem minha contas. Façam e refaçam os cálculos. Chegarão à mesma conclusão inevitável: Severino Cavalcanti empobreceu com a política. Esse sim, o verdadeiro empobrecimento ilícito!

Severino chegou a comandar a sessão por mais de meia hora. Ouviu discursos e apoiou pronunciamentos feitos no plenário em respaldo ao deputado Nilton Baiano (PP-ES), acusado pelo ex-prefeito Paulo Maluf de desviar recursos de campanha para prefeitos. Quando começou a falar, o plenário ficou quase todo de pé, em profundo silêncio. Disse que demorou a tomar uma decisão porque temia que a renúncia fosse vista como confissão de culpa. E reafirmou inocência. Disse que foi condenado antecipadamente pelos que estão brigando por seu cargo:

- Optei pela renúncia, porque já me sabia condenado de antemão. Minha culpabilidade foi declarada, sem apelação, antes das provas. Minha condenação veio antes de qualquer sentença, veio pela imprensa, pela voz de alguns poucos, veio por aqueles interessados em tornar vaga, o mais rapidamente possível, a cadeira do presidente da Câmara. Veio pelos interessados em ocupar minha vaga.

Severino disse ainda ser uma vítima da elite:

- A elitezinha, essa que não quer jamais largar o osso, insuflou contra mim seus cães de guerra. Arregimentou forças na academia e na mídia, e alimentou a opinião pública a versão caluniosa de um empresário, que precisava da mentira para encobrir as dívidas crescentes de seus restaurantes.

Num trecho de improviso, pediu que os que comandarão a Casa com sua saída não deixem voltar a prática de beneficiar uns poucos nas viagens. Dirigindo-se aos parlamentares do baixo clero, disse:

- Aos companheiros que outorgaram o honroso mandato de presidente da Câmara, peço que jamais esmoreçam: ninguém lhes poderá tirar a dignidade conquistada. A Câmara lhes pertence como legítimos representantes do povo brasileiro. Não permitam que só um deputado viaje oito vezes ao ano para o exterior representando esta Casa. Os deputados do baixo clero antes não tinham vez nem hora nesta Casa.

Como o ex-deputado Roberto Jefferson, Severino também atribuiu sua desgraça à imprensa. Citou trechos de reportagem publicada no GLOBO de domingo passado, em que os parlamentares do baixo clero se diziam decepcionados e lamentavam sua derrocada, mas não disse o nome do jornal - "que às vezes me reserva os piores adjetivos".

Afirmou que lutará para provar sua inocência nos tribunais. Ao mesmo tempo, estará em campanha para tentar retomar seu mandato em 2006:

- Voltarei. O povo pernambucano, de João Alfredo e outros municípios de minha base, mais uma vez não me faltará. (...) Voltarei, o povo me absolverá! - discursou Severino.

Quando terminou sua fala, entregou a José Thomaz Nonô a carta formalizando a renúncia. Antes de qualquer aplauso ou manifestação de apoio, o caos se instalou nas galerias, interrompendo a sessão, só retomada para o presidente interino anunciar que o prazo de cinco sessões para escolha do novo presidente da Câmara começa a ser contado a partir da publicação da renúncia, hoje.

Poucos lamentaram a renúncia. Alguns disseram que essa legislatura ficará na História como uma das piores. Com certo alívio, todos torcem para que o sucessor de Severino consiga recuperar a imagem da instituição.

Do outro lado do Congresso, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), lembrou que a crise não acaba nisso:

- Virou-se a página, mas a crise não se esgota com a última punição, com a última cassação, com a última renúncia. Nós precisamos aprimorar a ética, a transparência, fazer a reforma política. O Brasil está cobrando muito que isso aconteça.

Gabeira: "A renúncia em si não basta"

O deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), o primeiro a pedir sua renúncia no plenário, disse:

- A renúncia do deputado Severino foi mais um passo dado no sentido de recuperar a credibilidade da Câmara. Mas a renúncia, em si, não basta. É preciso julgar todos os deputados envolvidos nas denúncias para passar o Congresso a limpo. Acho que somente depois de tudo isso é que poderemos retornar ao nosso cotidiano, que é votar os projetos de interesse do Brasil.

- Foi uma sessão tensa e a nota dominante foi a do constrangimento. Constrangimento do Severino que se despede de uma vida pública de quase cinco décadas. E da Câmara, especialmente, dos que votaram nele, pelas expectativas depositadas. Foi isso que feriu o silêncio - explicou Nonô.

Nonô convocou para hoje uma reunião do colégio de líderes que decidirá os critérios para a escolha do novo presidente, a data, quando será realizado um eventual segundo turno.

- Lamento. A perda não é pessoal, é da instituição, que é o poder mais importante da República. É mais uma derrota desta legislatura e, infelizmente, não vamos conseguir esquecê-la - lamentou o líder do PTB, José Múcio Monteiro (PE).

A deputada de primeiro mandato Perpétua Almeida (PCdoB-AC) refugiou-se no banheiro para chorar.

- Assistir à renúncia do presidente, o envolvimento da Casa... Ouvir os gritos dos estudantes e sentir que, no fundo, eles têm razão. É muito forte - disse Perpétua.

O líder da Minoria, José Carlos Aleluia (PFL-BA), disse que a saída de Severino é uma segunda chance, uma lição para a Câmara consertar o erro que foi sua eleição.

- Quando se entra no labirinto e se está perdido, a melhor solução é voltar ao inicio, a fevereiro de 2005. Espero que as lideranças do Governo não nos conduzam a outro labirinto - disse Aleluia.

O DISCURSO DE RENÚNCIA na página 4

Gritos e pancadaria nas galerias

Protesto contra Severino e corrupção acaba em tumulto na Câmara

BRASÍLIA. A despedida de Severino Cavalcanti da presidência da Câmara foi marcada ontem pela truculência de seguranças, que agrediram com murros e sopapos estudantes e professores que foram ao Congresso protestar contra a corrupção e a redução das verbas para educação. A confusão começou quando os seguranças impediram a entrada dos estudantes da UnB nas galerias. Mesmo com a proibição, alguns estudantes e professores conseguiram senhas nas lideranças do PFL e do PSDB e furaram o cerco. Ao fim do discurso de Severino, o silêncio do plenário foi quebrado pelos gritos da professora de sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Vilma Pessoa, de 44 anos:

- Vai embora, Severino. Corrupto! O povo quer te ver pelas costas! Já vai tarde!

O confronto recrudesceu o plenário e se transformou em pancadaria generalizada, resultando em portas de vidro quebradas e alunos feridos.

Já na presidência da Casa, José Thomaz Nonô (PFL-AL) determinou que as galerias fossem esvaziadas para conter o tumulto. Os seguranças correram em direção à professora, tentando contê-la.

- Ia pedir mais verba para educação, mas vi o discurso de renúncia até o final. Quanto mais ele falava, mais eu me indignava. Fiz aquela fala, que acredito seja a fala que está engasgada na garganta do povo brasileiro. Prometi ao meu pai, torneiro mecânico aposentado, que está desiludido, que ia dizer tudo o que está engasgado na garganta dele - disse a professora.

Na chegada de Severino à Câmara, um esquema foi montado para afastar os jornalistas. Os credenciados, que têm livre acesso ao cafezinho do plenário, foram expulsos para que Severino não fosse interpelado.

Depois do tumulto provocado pelo protesto da professora, estudantes que estavam do outro lado da galeria começaram a gritar palavras de ordem contra o mensalão e o mensalinho. O segurança Cleto Aparecido, à paisana, avançou sobre um garoto com uma faixa. A troca de socos e empurrões se generalizou.

- Não! Não! Não! Policia é prá ladrão! - gritavam os estudantes, que rolaram cadeiras abaixo atracados com os seguranças.

Sal Freire, assessora da deputada Luciana Genro, foi jogada no chão e reclamava de um soco no peito, dado pelo segurança Cleto Aparecido.

- Estava proibida a exibição de faixas nas galerias. Fui retirar e me agrediram. Estava cumprindo meu dever, não tenho nada contra estudantes - disse Cleto.

Do plenário, os parlamentares assistiram ã confusão, que levou à detenção de três estudantes da Universidade de Brasília (UnB), liberados mais tarde. Um deles, Dimitri Assis, estudante de Pedagogia, teve ferimentos na mão. Os garotos foram encaminhados ao Instituto Médico-Legal para exame de corpo de delito.

Legenda da foto: SEGURANÇAS e MANIFESTANTES se enfrentam: "Vai embora, Severino. O povo quer te ver pelas costas! Já vai tarde!"