Título: DESPERDÍCIO FINAL
Autor: César Tartaglia
Fonte: O Globo, 22/09/2005, Opinião, p. 7

O suicídio em que o PT se enfiou talvez não tenha precedentes na vida política do país. Pode-se até fazer um paralelo da performance do partido nas urnas de 2002 com a vitória de Fernando Collor nas eleições de 1989. Mas, daquela vez, as nossas poupanças e o mau gosto de um bolero interministerial não nos deixam esquecer, Collor fez piruetas em caças da FAB pilotando um cacife de 35 milhões de votos de cidadãos que pareciam ver na eleição direta, após tanto tempo de ditadura, a panacéia para os males do país e não sabiam direito quem estavam nomeando para síndico da nação. Coisa diversa do PT, que levou para as urnas um eleitorado mais amadurecido, mais crítico e, portanto, menos propenso a se deixar conduzir por bravatas. Isso valorizou ainda mais o voto em Lula, e elevou o seu cacife político a uma altura inalcançável por qualquer outro político contemporâneo. O problema é que tal patrimônio corre o risco de não sobreviver ao mensalão.

Há precedentes, no entanto, a mostrar que dilapidação de patrimônios no Brasil não é privilégio petista. A história brasileira tem outros exemplos de cidadãos, instituições e grupos que não souberam manter a riqueza amealhada - e o exemplo mais dramático, que virou paradigma do desperdício tupiniquim, foi o do então sortudo Eduardo Varela. Em 1972, Dudu da Loteca, como ficou conhecido, abiscoitou a primeira grande fortuna da Loteria Esportiva, o jogo que a Caixa Econômica lançara dois anos antes nas águas do entusiasmo provocado pela Copa do México. Sua vida de milionário, no entanto, durou pouco tempo: Dudu se deixou levar pelo deslumbramento (o que confere falta de originalidade a dirigentes petistas inebriados pela fumaça de seus charutos), torrou todo o dinheiro do prêmio e, falido, voltou à vida franciscana. Um tombo do qual não mais se levantou - se é que me faço entender pelo inquilino do Palácio do Planalto.

O futebol de sonho da seleção de 1970, aliás, é parâmetro para outro exemplo de falta de apreço pela fortuna. As estripulias de Pelé, Gerson, Rivelino e Tostão em campo elevaram ao topo do mundo o prestígio do mais popular esporte do país. Foi montado nesse cabedal que a seleção brasileira embarcou quatro anos depois para a Europa, levando na delegação auto-suficiência, o espírito retranqueiro do técnico Zagalo (ainda se escrevia Zagalo desse jeito castiço, sem o "ele" dobrado, toc, toc, toc) e um ponta-direita chamado Valdomiro para encarar a revolução laranja da Holanda e a genialidade de Beckenbauer, Overath e Breitner. Ou seja, depois de assistir ao furacão Jairzinho no México, a torcida teve de engolir Valdomiro na Alemanha. Não há prestígio que resista - e o futebol brasileiro caiu do topo para um limbo no qual se arrastou por algumas copas. Nem Delúbio faria pior.

Ainda fora da política, mas numa área igualmente propensa à farra, o carnaval carioca também tem seu exemplo de desapreço pela ventura. Até fins dos anos 60, a Portela era praticamente imbatível na avenida, mas foi nessa época que a agremiação trocou uma história enriquecida pela obra de Paulo Benjamin de Oliveira e Candeia pela presença evanescente de celebridades da hora, que usavam em proveito próprio o palco que a escola lhes oferecia nos desfiles. A minha escola desandou tanto que, este ano, atingiu o paroxismo do desrespeito a suas tradições ao barrar no baile do Sambódromo a sua venerável velha-guarda. A outrora campeã de votos, digo, de desfiles hoje briga tão-somente contra o rebaixamento - o que, aliás, remete a outros dois gigantes do desperdício de patrimônio, que são o Flamengo e o Vasco.

Na década de 80, com histórico de pontualidade e quase infalibilidade, os Correios chegaram a ser a instituição com mais credibilidade entre os brasileiros, superando inclusive a solidez secular da Igreja Católica. Hoje, a empresa perdeu prestígio e, pior, tem sua imagem perigosamente ligada a uma CPI que apura a prática de corrupção, esse monstro que se alimenta de reputações, nos seus altos escalões. A imagem que se tinha dos Correios naquela época era de um mensageiro indefectivelmente entregando cartas e telegramas no meio da Floresta Amazônica; na era pós-mensalão a visão do carteiro infalível foi substituída pelas imagens de televisão mostrando um funcionário da empresa embolsando uma - indefectível? - propina. E foi por esse ralo da História que desceu o patrimônio, e não somente o financeiro, de empresas aéreas, de artistas, de jogadores de futebol, até de meretrizes.

O vazadouro não poupa partidos nem presidentes. A seleção recuperou credibilidade, a Portela tem feito um belo trabalho para resgatar suas tradições, mas nem sempre o tombo tem como conseqüência a recuperação. Na política, principalmente, desperdiçar oportunidades, agir sem compromisso com programas submetidos ao eleitor ou dar interpretações heterodoxas à ética pode custar caro. Quase sempre custa - e só não acredita nisso quem reza pelo princípio segundo o qual os cidadãos, mesmo com a arma do voto nas mãos, têm memória curta.

CESAR TARTAGLIA é jornalista.

Na política, desperdiçar chances pode custar caro. Quase sempre custa