Título: MUTIRÃO CONTRA O NEPOTISMO
Autor: André Correa
Fonte: O Globo, 22/09/2005, Opinião, p. 7

Em meio a um noticiário recheado por mensalões, CPI dos Correios, desintegração da base de sustentação governista, denúncias de deputados contra altos integrantes do governo, malas de dinheiro apreendidas pela Polícia Federal, entre outros escândalos, uma boa notícia nos oferece o alento de que ainda há esperança: um grande passo para a proibição constitucional da prática do nepotismo em nosso estado foi dado pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Foi aprovada a emenda à Constituição que veda a prática do nepotismo no estado.

A emenda constitucional, que ganhou o número 34 e já vale desde 15 de julho, prevê o fim do nepotismo nas três esferas de poder estadual: Executivo, Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Estado (TCE). A partir de agora fica proibida a nomeação de cônjuges, companheiros e parentes até terceiro grau civil: pai, mãe, avós, filhos, netos, bisnetos, tios, sobrinhos, primos e até sogros e cunhados. Muitos podem alegar que houve radicalismo na medida aprovada e até justificar que algumas pessoas, efetivamente competentes para as funções que lhes foram confiadas, podem ter sido prejudicadas, mas é fato que os excessos permitidos no passado abriram caminho para abusos, como os recentemente cometidos pelo presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, que, dizem, nomeou nada menos que oito parentes. Será mesmo que existe tanta competência assim concentrada numa única família?

Prefeituras e câmaras municipais ficam fora da regra, por não estarem na esfera de alcance das decisões do Legislativo estadual.

Permito-me dizer que a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro está mais avançada que o Congresso Nacional, que ainda não teve coragem para concluir a apreciação da matéria, pois, enquanto na Alerj o assunto já foi apresentado, discutido, aprovado e sancionado pela governadora - portanto está a emenda constitucional em pleno vigor - na Câmara dos Deputados, o relatório final da PEC nº 334 - que tramita na Casa desde 1996 - aguarda ser votado. Além disso, a crise política e as CPMIs em curso engessaram a tramitação de diversos projetos de relevada importância para a população, entre eles um que propõe o fim do nepotismo em nível federal. E é esse o momento de iniciar um grande debate nacional, o que permitiria com que o assunto chegasse também às câmaras municipais, para que todos os poderes sigam, assim, o exemplo oferecido pela Alerj.

A principal garantia da igualdade de tratamento a todos os cidadãos, no serviço público, é o princípio da impessoalidade, que deve reger todos os atos da administração pública. A contratação de parentes fere esse princípio. Se a contratação é feita exatamente com base em acepção pessoal, nos laços familiares, com evidente desvantagem para os que não são parentes, isso sim é que se constitui em discriminação.

Se há um princípio que é ferido diretamente pela prática do nepotismo é o da moralidade pública. Nomear parentes implica aumentar a renda familiar. Isso significa utilizar-se do cargo para auferir vantagem injusta em relação ao restante dos cidadãos.

Outro argumento deve ser enfrentado: o de que os cargos para os quais se nomeiam parentes são cargos em confiança, e quem seria de maior e mais estrita confiança do que os parentes, um filho, a esposa? Esta idéia nos remete ao conceito de confundir o público com o privado, tratar a administração pública como se fosse um negócio particular, como se os bens do Estado integrassem seu patrimônio particular. Qualquer semelhança com Brasília não seria mera coincidência. Os cargos de confiança não são cargos para serem preenchidos por pessoas da confiança particular dos que exercem a chefia. São para serem ocupados por aqueles que gozem de confiança funcional - isto é, que tenham competência comprovada e reputação ilibada, que gozem da confiança do Estado.

Por fim, é preciso dizer que o fim do nepotismo não é solução para os problemas do Estado brasileiro. Boa parte da distribuição fisiológica de cargos é motivada, ou influenciada, pela fragilidade das carreiras típicas de Estado. A administração pública precisa de quadros permanentes, inclusive gestores qualificados, se for o caso, reciclados, e capazes de garantir estabilidade às áreas de políticas fundamentais para qualquer governo. Em todos os países democráticos do mundo, os governos dispõem, em número maior ou menor, de cargos para os quais são indicados quadros de confiança, necessários para trabalhar pela implementação do programa democraticamente vitorioso nas urnas, algo legítimo ao nosso ver. Independentemente disso, fundamental é fortalecer o serviço público e valorizar as carreiras de Estado.

ANDRÉ CORRÊA é deputado estadual (PPS-RJ).

A Câmara ainda não teve coragem para votar o projeto, debatido há nove anos