Título: COMPLEXO DE CARTOMANTE
Autor: GLÁUCIO ARY DILLON SOARES
Fonte: O Globo, 26/09/2005, Opinião, p. 7

Desde 1979, os homicídios cresciam à taxa de 0,9 por 100 mil habitantes no Brasil. Não obstante, a taxa com armas de fogo crescia mais rapidamente do que a taxa dos homicídios com outros instrumentos que cresceram cada vez mais devagar, estacionaram e, finalmente, declinaram. Todo o aumento na taxa brasileira de homicídios na última década se deve às armas de fogo. O setor político reagiu com muito atraso, esperando até 2003 para aprovar o Estatuto do Desarmamento. A campanha só foi iniciada em julho de 2004 e retirou de circulação cerca de meio milhão de armas. O resultado já se fez sentir: os homicídios por armas de fogo caíram 8,2% em 2004 em relação a 2003! A relação com o desarmamento é clara: nos estados que retiraram de circulação mais de 150 armas por 100 mil habitantes, a queda foi de 14,5%; nos estados cujos governos não se esmeraram e retiraram menos armas, a queda foi de apenas 2%.

Em São Paulo, que há tempos usa programas integrados de prevenção e repressão, a queda é mais antiga. Houve uma queda dramática dos portes concedidos de 1994 para 1995 (refletindo a saída de Fleury, do lobby das armas, e a entrada de Covas, contra elas) e, na capital, um declínio dos registros. Foram os primeiros passos. A queda na taxa de homicídios foi rápida a partir de 2000. Somente na cidade de São Paulo foram salvas 6.446 vidas em relação a 1999. Se fossem mantidos os níveis de 1999, 2.694 pessoas que estão vivas teriam sido mortas em 2004. Em contraste, no Brasil como um todo, a taxa por 100 mil habitantes cresceu durante todo o período ¿ até o primeiro ano da campanha. Túlio Kahn, comparando o estado de São Paulo com Cáli, Bogotá e Nova York, outras experiências exitosas, salienta que o controle de armas e o georreferenciamento são as políticas comuns; além dessas, há programas específicos em cada caso. Medellín experimentou redução ainda mais dramática após controlar as armas de fogo.

Estamos salvando vidas e os dados estão aí para mostrar. Não obstante, ironicamente, poucos dias depois dessa notícia alvissareira de que foram salvas milhares vidas em 2004, encontrei a publicação simultânea no GLOBO e no ¿Estado de S. Paulo¿ de um artigo do filósofo Denis Rosenfield condenando as medidas que estão dando certo. Esse autor padece do complexo de cartomante: pretende prever o futuro sem usar dados do passado e do presente. Afirma que ¿os que defendem o desarmamento estariam defendendo os criminosos, pois estes não serão minimamente atingidos por essas medidas¿. Que dados o filósofo apresenta que demonstrem a plausibilidade da afirmação? Nenhum. É assim porque o filósofo Rosenfield diz que é e acabou.

Em outra passagem futurâmica, nosso filósofo afirma que ¿salta aos olhos, salvo para os que não querem ver, que o crime organizado independe do tipo de arma que os cidadãos de bem têm para sua defesa própria¿. Que dados o filósofo apresenta que substanciem essa afirmação? Nenhum. É assim porque o filósofo Rosenfield diz que é e acabou. Aliás, o filósofo Rosenfield prefere ignorar os levantamentos que mostram que as armas apreendidas da bandidagem são, predominantemente, revólveres e pistolas fabricados no seu estado, o Rio Grande do Sul. Porém, o complexo de cartomante continua: ¿A lei do desarmamento, como tantas outras em nosso país, dificilmente pegará, de modo que se criará a seguinte situação esdrúxula: os cidadãos de bem deverão se aprovisionar de armas junto aos delinqüentes e criminosos, num mercado negro que florescerá, dando maior força ainda à criminalidade.¿ Afirmações de cartomante, desprovidas de dados. Devemos aceitá-las na base da fé, porque o filósofo Rosenfield diz que é e acabou.

Há contradições: no mesmo artigo em que afirma seu ceticismo diante das leis brasileiras, decretando que a lei do desarmamento não pegará, afirma que, quem ¿fizer uso indevido dessa arma, será igualmente julgado por isto, e o Código Penal prevê perfeitamente esses casos¿. As leis passaram de letra morta, inoperantes, a inflexíveis, certas, garantidas, eficientes ¿ em meia página.

O filósofo não fez o dever de casa: não buscou a percentagem dos homicídios que chegam a julgamento, nem comparou, ano a ano, o número de homicídios com o número de condenações por homicídios. Afirmou, chutou e ficou por aí. Infelizmente, passou aos insultos, ao afirmar: ¿Defender o desarmamento... é um ato de extrema irresponsabilidade.¿ Nós, que há décadas pesquisamos cientificamente o crime e a violência, somos a favor do desarmamento como resultado de nossas pesquisas e não por irresponsabilidade. Creio que extrema irresponsabilidade é escrever artigos, tentando formar a opinião pública numa área vital, sem ter competência para tal, sem fazer o dever de casa, sem efetuar levantamentos mínimos buscando os dados da realidade que estão disponíveis para quem sabe pesquisar e que demonstram que o desarmamento salva vidas.

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES é pesquisador do Iuperj.