Título: Bush, Lula e ONU
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 04/11/2004, O país, p. 4

Com a confirmação da reeleição do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e de maneira muito mais afirmativa do que há quatro anos, quando perdeu no voto popular e teve a eleição confirmada pela Suprema Corte em meio a muita polêmica, é de se esperar um aprofundamento das políticas radicais e unilaterais, tanto no plano interno quanto no externo, que vêm sendo a tônica de seu governo. Bush promoveu uma subversão da política externa americana depois dos atentados de 11 de setembro de 2001.

Eles, e principalmente a guerra do Iraque, criaram realidades muito complexas, que foram decisivas para uma vitória republicana incontestável ¿ o partido fez ainda a maioria dos governadores, da Câmara e do Senado ¿ e continuarão a ditar as regras da política americana. E certamente terão influência nas relações entre o Brasil e os Estados Unidos.

A mudança mais decisiva na recente política externa americana foi a flexibilização da doutrina consagrada pelo presidente Woodrow Wilson a partir de 1912. Wilson e Bush têm uma religiosidade comum que marca a atuação dos dois à frente da Casa Branca. Filho de um pastor presbiteriano, Wilson também acreditava que era guiado por Deus e que tinha por missão fazer o mundo avançar com base nos princípios da civilização americana.

Ainda agora, na campanha eleitoral, perguntado por um jornalista se guiava-se por conselhos de seu pai, o ex-presidente George Bush, o presidente foi enfático: ¿Vou um pouco mais acima. Sigo os conselhos do meu Pai que está no céu¿. E, entre os segmentos que mais votaram, nele, estão os eleitores que vão à Igreja.

Assim como Bush faz hoje no Iraque, Wilson tinha um impulso missionário de levar aos povos do mundo a civilização americana, e acreditava que sabia o que era melhor para os outros países. Mas esse ¿impulso missionário¿ tinha um aspecto que o distingue da doutrina Bush: Wilson acreditava que a intervenção americana só seria legítima se se desse em favor de interesses humanitários ou da comunidade internacional.

A chamada doutrina wilsoniana está sendo adaptada pelos neoconservadores que dominam a política externa americana. A nova ordem acredita que o interesse nacional americano sendo alcançado, o resto do mundo terá boas conseqüências. O governo Bush acha que a perseguição, por parte dos Estados Unidos, de seu interesse nacional cria condições para promover a liberdade, os mercados e a paz mundial.

Pelo conceito de segurança nacional em vigor, os valores americanos são universais, devem ser espraiados pelo mundo, e se legitimam por si mesmos, sem necessitar de chancela de organismos internacionais ou acordos multilaterais.

A base dessa política é a supremacia econômica e militar, e um de seus pontos principais assegurar que o poderio militar americano possa evitar ataques, projetar força e atacar em defesa dos interesses americanos. Esses são conceitos que dão base à política dos ¿ataques preventivos¿, um dos pilares da doutrina Bush.

Pode-se dizer que, embora dividida, a América chancelou essa política com os mais de 3 milhões de votos de dianteira que deu a Bush, e a nem sempre conseqüente vitória no Colégio Eleitoral. Especialmente depois que o terrorista Bin Laden ousou aparecer na televisão ameaçando os americanos caso reelegessem Bush.

Essa aparição deve ter sido uma força importante para o americano médio não titubear na escolha de seu candidato. E certamente o fato de o país estar em guerra pressionou para que o candidato democrata John Kerry admitisse tão rápido a derrota.

Mesmo voltando a falar em multilateralismo, como estão fazendo, os encarregados da política externa americana estão sempre atuando em função de casos especiais, de interesses específicos dos Estados Unidos. Como, por exemplo, quando obtiveram a resolução para a retirada das tropas da Síria do Líbano. O governo americano exerceu ali sua capacidade de pressão dentro do Conselho de Segurança, e conseguiu uma resolução com o poder da ONU de recomendar que os sírios se retirassem.

Isso mostra, na linguagem diplomática, que depois que houve a ruptura, os outros países têm procurado encontrar formas de convivência com a potência hegemônica. E o governo Bush continua na linha de buscar formas de utilização da ONU, que são coisas distintas.

Não há dúvidas de que, dentro dessa política de manipulação da ONU, em vez de contestação formal, o governo Bush vai trabalhar para influir na escolha do próximo secretário-geral daquele organismo, assim como atuar em diversos campos para exercer seu poder. Para o Brasil, que pleiteia fortemente um lugar no Conselho de Segurança da ONU, essa será uma importante etapa na relação bilateral.

Já se disse aqui que o governo brasileiro, olhando estritamente os nossos interesses comerciais, quase torcia para a permanência de Bush na Casa Branca. Temia-se que os democratas fossem mais protecionistas ainda, acrescentando às barreiras já existentes questões trabalhistas e ambientais.

A retomada das negociações da Alca, e as disputas na Organização Mundial do Comércio, por exemplo, serão feitas do ponto em que se encontram, sem interrupções, e sem grandes novidades, o que pode ser bom. E a relação entre os presidentes Bush e Lula pode ajudar a desentupir alguns canais.

Internamente, temos setores do governo claramente antiamericanos que estão neutralizados mas ativos, e temas delicados como o enriquecimento de urânio. Na região, que passa por um momento particularmente tumultuado, há questões como a Venezuela de Chávez e o combate ao narcotráfico na Colômbia, temas delicados que nos tocam fundamente. A relação especial com Cuba de Fidel Castro será sempre um problema na relação com os Estados Unidos de Bush. E há ainda a força de paz que assumimos no Haiti, a pedido dos americanos.