Título: Perigoso precedente
Autor: STEVENS REHEN E ALYSSON MUOTRI
Fonte: O Globo, 04/11/2004, Opinião, p. 7

Estudos embriológicos contemporâneos afirmam, sem qualquer dúvida, que o princípio da vida humana coincide com o da fecundação. Este autêntico milagre da vida, que é o início de um novo ser, tem apenas de passar pelas diversas fases naturais do desenvolvimento humano, se nada interromper este processo. Portanto, uma vez que ocorra a fecundação de um ser humano, seja embrião ou não, deve ter reafirmado seu direito natural à vida.

Tudo isto deve ser levado em conta antes da nova votação do substitutivo da Lei de Biossegurança. Parte desta lei permitiria o uso de células-tronco embrionárias humanas, com a conseqüente morte do embrião, com a justificativa de que são apenas ¿materiais¿ descartados por clínicas de fertilização in vitro , por estarem fora das especificações, ou que, por estarem congelados por mais de três anos, têm prazo de validade vencido, e poderiam servir para pesquisas terapêuticas e posterior cura de seres humanos.

Este caso, curiosamente, é um bom exemplo de conduta não ética que deixa de ter o caráter de crime para assumir, paradoxalmente, o caráter de correto e ético, a ponto de se pretender o reconhecimento legal da parte do Estado, através mesmo da edição de uma medida provisória, para que seja praticada por profissionais de saúde e médicos (sic).

Por aí, muitos tratam animais como pessoas, mas não podemos tratar pessoas como coisas. Uma pessoa nunca deveria ser objeto de compra, empréstimo, uso etc. Isto se aplica mesmo àquelas que, por opção, oferecem seus corpos como objeto. Isto acontece quando os embriões congelados não alcançam êxito, ou seja, não adquirem o status de pessoas, para serem, então, coisas a serem destruídas ou relegadas à obtenção de células-tronco, transformando-se em cobaias de laboratório.

A máxima ¿os fins justificam os meios¿ nunca se justifica, principalmente se esta implica manipulações indescritíveis com seres humanos indefesos, mesmo que tenham suas procedências desconhecidas e sejam considerados como indigentes.

Nem o governo e nem o Congresso devem se deixar levar por falácias de que o embrião, o ainda não nascido, não tem direito algum, uma vez que só seria um ser humano aquele que se comporta como tal ao ter, por exemplo, a capacidade de estudar história, comunicar-se com os outros ou ser consciente de si mesmo. Se assim fosse, os que estão dormindo, ou em coma, não seriam pessoas propriamente ditas, mas apenas objetos.

No plano jurídico, o embrião humano já está a gozar da garantia de inviolabilidade do direito à vida, prevista na Constituição, pois tal garantia não teria sentido se não alcançasse todas as fases da vida humana, que começa na concepção e vai até a morte da pessoa. Além disso, não depende fundamentalmente de motivos religiosos, por mais grandiosos que sejam, mas de razões éticas fundamentadas na própria natureza humana.

Portanto, não se deve esquecer que a pessoa tem um valor em si mesma e, apenas pelo fato de existir, merece ser reconhecida como tal, independentemente de suas condições de vida. Abrir o precedente de aprovação, no Senado, da manipulação de células-tronco embrionárias poderia justificar a prática de crimes ainda piores no futuro.