Título: A chance do Brasil
Autor: STEVENS REHEN E ALYSSON MUOTRI
Fonte: O Globo, 04/11/2004, Opinião, p. 7

Cientistas brasileiros vêm evidenciando o potencial terapêutico de células-tronco adultas no tratamento de doenças cardíacas e seu estudo deve continuar sendo incentivado em nosso país. Apesar disso, é muito pouco provável que tais células venham a ser utilizadas no tratamento de enfermidades como diabetes, Alzheimer, Parkinson etc.

Diferentes das células adultas, as células-tronco embrionárias são comprovadamente capazes de se diferenciar nos mais variados tipos celulares que compõem nosso corpo e, apesar do nome, não são derivadas de fetos humanos mas de conjuntos celulares muito pouco desenvolvidos, congelados em clínicas de fertilização e eventualmente descartados ¿ jogados no lixo ¿ após determinados períodos de tempo.

O presidente reeleito dos Estados Unidos, George Bush, impede em seu país o investimento de dinheiro público em estudos e lidera uma cruzada pelo banimento das pesquisas com células-tronco embrionárias em escala mundial. A comunidade científica americana percebe a gravidade de tais atos e, no início de outubro, reuniu-se a filósofos, economistas e representantes de diferentes crenças religiosas para debater o potencial dessas células e as conseqüências de sua não utilização para o progresso da medicina moderna.

O evento ocorreu no Instituto de Pesquisa Salk, na cidade de San Diego, Califórnia, e terá uma síntese apresentada pela televisão americana, em cadeia nacional, neste mês. Ao contrário do que possa parecer, diversos representantes religiosos, incluindo judeus e muçulmanos, parecem não se opor à utilização de células-tronco embrionárias, fundamentando-se no potencial desta tecnologia para salvar vidas humanas. A exceção ficou mesmo por conta dos representantes cristãos, grupo religioso em que não houve consenso a respeito.

Para alguns dos cientistas que participaram da reunião, o potencial terapêutico das células-tronco embrionárias poderia ser comparado aos efeitos da revolução industrial na Inglaterra ou do silício e da biotecnologia sobre os Estados Unidos. Neste sentido, o embargo governamental vigente trará conseqüências irreparáveis ao desenvolvimento tecnológico e melhoria da qualidade de vida do povo americano, ameaçando-se assim a soberania científica daquele país.

Atentos à possibilidade de se tornarem os mais novos líderes mundiais na área biomédica, Inglaterra, Espanha, China, Japão, Coréia, Austrália, Israel e Cingapura estão investindo milhões de dólares na fundação de centros de estudo de células-tronco embrionárias humanas. Alguns desses países criaram ainda um fórum virtual com o intuito de acelerar discussões éticas, compartilhar informações técnicas, caracterizar e disponibilizar linhagens de células-tronco embrionárias aos membros participantes.

O Brasil possui sólida tradição em biologia celular e, sabendo aproveitar o vácuo deixado pelos Estados Unidos, tem enorme potencial para também tornar-se um dos líderes mundiais dessa nova revolução. Os principais passos neste sentido incluem o diálogo já iniciado entre cientistas e governo, o incremento da discussão pública sobre o assunto e o incentivo, o mais rapidamente possível, à aprovação de uma lei de biossegurança que permita o trabalho dos pesquisadores brasileiros.

Os cientistas dedicados ao estudo de células-tronco adultas e embrionárias precisam ainda se integrar mais efetivamente através, por exemplo, de um fórum virtual semelhante ao citado acima e patrocinado por agências de fomento nacionais.

Seria importante, também, uma página oficial na internet para permitir a rápida troca de informações e disponibilização de linhagens celulares à toda a comunidade científica interessada.

Como diz Irving Weissman, pesquisador da Universidade de Stanford, a responsabilidade moral está naquele que reconhece o potencial médico das células-tronco embrionárias, mas impede ou não incentiva seu estudo. Este deve ser responsabilizado pelas vidas que eventualmente deixarão de ser salvas. A comunidade científica brasileira reconhece o potencial destas células e não pode se eximir de tal responsabilidade. STEVENS REHEN é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Scripps Research Institute, da Califórnia. ALYSSON MUOTRI é pesquisador do Salk Institute, da Califórnia (EUA).