Título: A NOVA GUERRA DO PARAGUAI
Autor: Geraldo Luís Lino/Lorenzo Carrasco
Fonte: O Globo, 23/09/2005, Opinião, p. 7

Quase despercebida no Brasil, uma séria crise se instalou no Mercosul após a recente visita ao Paraguai do secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, cujos desdobramentos ameaçam colocar em xeque o bloco regional. O detonador imediato foi o acordo de cooperação militar entre Assunção e Washington, pelo qual o Senado paraguaio concedeu imunidade diplomática a cerca de 400 militares americanos que participarão de exercícios com os militares locais até o final de 2006, contrariando a posição dos demais membros do Mercosul diante de solicitação idêntica.

Em paralelo, multiplicaram-se na região os rumores sobre a suposta instalação de uma base americana permanente em Mariscal Estigarribia, no Chaco, juntamente com outros, segundo os quais o Paraguai pretenderia um acordo de livre comércio com os EUA, em um arranjo denominado "troca de segurança por comércio".

Na verdade, o que está em causa não é uma ameaça militar, mas a possibilidade de desarticulação do precário processo de integração regional. Independentemente dos atritos políticos que acarretaria, em termos estritamente militares, uma base local teria para o Pentágono um caráter muito mais simbólico do que o de uma ameaça real aos países vizinhos - tanto pela escassez de forças terrestres para guarnecê-la (e o conflito no Iraque está demonstrando os limites da possibilidade de controle de uma grande região hostil à presença delas), como pela própria posição mediterrânea do Paraguai.

O problema é político e econômico. O fato é que há no Paraguai uma crescente insatisfação com a integração regional, cujos benefícios para o país têm deixado muito a desejar. Neste particular, a responsabilidade maior cabe ao Brasil, cujas elites dirigentes se obstinam em aferrar-se a políticas que privilegiam o rentismo financeiro, em detrimento da economia real. Semelhante orientação - concentradora de renda, antiprodutiva e desintegradora - é incompatível com uma integração efetiva, que não pode prescindir de uma retomada real do desenvolvimento socioeconômico brasileiro. Além do descontentamento paraguaio, essa inclinação rentista está na raiz dos desencontros com a Argentina (vide a falta de apoio à reestruturação da dívida pública capitaneada pelo ministro da Economia, Roberto Lavagna) e da igualmente preocupante irritação boliviana com as atividades da Petrobras no país. Assim, sem uma efetiva mudança de rumo na política econômica de Brasília, a já travada integração regional terá as suas possibilidades ainda mais reduzidas.

No tocante ao Paraguai, salta aos olhos que o país precisa receber dos sócios maiores do Mercosul um tratamento análogo, guardadas as proporções, ao proporcionado pela União Européia aos países ibéricos e à Grécia, com investimentos de qualidade para a modernização de sua economia. Além disto, é urgente uma solução para o dilema das bilionárias dívidas de construção e operação das usinas hidrelétricas binacionais de Itaipu e Yaciretá, cujo serviço tem estrangulado de forma brutal a capacidade financeira do governo paraguaio e que constitui uma das principais causas da insatisfação local com os vizinhos.

Com a devida determinação política, ambos os problemas podem ser equacionados de acordo com a consagrada lição do primeiro-secretário do Tesouro dos EUA, Alexander Hamilton: transformar dívida em crédito para o desenvolvimento. No caso, uma parte substancial da dívida das usinas poderia ser convertida em títulos de longo prazo, os quais, por sua vez, seriam usados como capital inicial de uma agência trinacional especificamente criada para fomentar o desenvolvimento paraguaio, com investimentos em projetos de infra-estrutura, industriais, de capacitação profissional, incentivos à inovação tecnológica e outros - algo como um "BNDES guarani" ou uma "Caja para el desarrollo" (órgãos regionais como o BID, a CAF e outros também poderiam associar-se à iniciativa).

Ao contribuir para a transformação do Paraguai em uma nação moderna, semelhante iniciativa representaria uma experiência inusitada e importante para o desenvolvimento sul-americano, além de um fator de segurança regional muito mais sólido do que qualquer consideração de ordem militar. No entanto, tudo depende da superação da atitude business as usual prevalecente entre as elites regionais - especialmente, vale insistir, as brasileiras. Esta, sim, representa uma ameaça muito maior para o futuro do subcontinente do que um punhado de marines no interior do Paraguai.

GERALDO LUÍS LINO e LORENZO CARRASCO são diretores do Movimento de Solidariedade Ibero-Americana (MSIA).